terça-feira, 24 de junho de 2014

A luta de um jornalista desportivo contra uma horda de climatólogos

                                                                                                                                           
Luís Pedro Sousa, chefe de redação do Record, escreveu na semana passada a propósito das reações que se seguiram ao Alemanha - Portugal:
Portugal viveu uma semana de depressão. A goleada sofrida frente à Alemanha, no jogo de estreia do Mundial 2014, não só fez esquecer a euforia vivida nos dias anteriores, especialmente desde as vitórias nos dois mais recentes jogos de preparação e das notícias relacionadas com a plena recuperação de Cristiano Ronaldo, como permitiu que emergisse uma série de novas vocações entre os cidadãos nacionais. O país ficou a saber que tem milhares de especialistas em meteorologia, climatologia, fisiologia e até medicina, que ainda acumulam tais saberes com uma notável cultura futebolística, especialmente nas suas componentes tático-estratégicas.

Da parte que me toca, assumo que a carapuça me serve na perfeição. Sim, escrevi sobre a hipótese de o local de estágio ter sido mal escolhido. Sim, escrevi sobre o facto de a seleção poder não ter tido tempo suficiente de adaptação às diferentes condições climatéricas que iria encontrar na fase de grupos. Sim, coloco em causa a preparação física e o rigor dos pareceres médicos que deram a cobertura necessária para que Paulo Bento embarcasse com os jogadores da sua preferência. Sim, coloquei em causa os experimentalismos nos jogos de preparação que impediram que o mais-que-provável onze inicial ganhasse rotinas no sistema de jogo que todos saberíamos que seria utilizado quando chegassem os jogos a doer.

Sim, tenho tendência para ficar otimista para o futuro próximo quando conseguimos uma boa exibição, da mesma forma que fico mais cético para o que aí vem quando fazemos um jogo abaixo das expetativas.

Quais as minhas qualificações técnicas de metereologia, climatologia, fisiologia, medicina e cultura futebolística, em especial nas suas componentes tático-estratégicas? Zero. 

Considero-me, no entanto, um indivíduo relativamente atento ao que se vai passando, e há décadas que sigo em detalhe todas as incidências à volta destas grandes competições. E lamento dizer a Luís Pedro Sousa que sempre que chegamos a estas grandes competições internacionais levamos com os discursos dos responsáveis em como todos os pormenores estão a ser minuciosamente preparados para que nada falhe quando chegar a hora das decisões. E existem temas que são invariavelmente referidos quando chegamos a esta fase, como a importância da adaptação ao clima local e a existência de programas específicos para que cada jogador possa chegar à competição na melhor forma possível após uma longa e desgastante época. Coisas que normalmente damos por garantidas, mas que acabam por saltar à vista de todos quando não são feitas de forma competente.

Mais: se os pormenores extra-jogo não fossem importantes, bastaria levarmos uma comitiva com 23 jogadores, treinadores, uma equipa médica, algum staff de apoio direto, e seria suficiente. No entanto, a comitiva oficial que está no Brasil é composta por:
  • 23 jogadores (agora apenas 22)
  • 1 selecionador nacional
  • 3 treinadores adjuntos
  • 2 médicos
  • 1 enfermeiro
  • 1 fisioterapeuta-chefe
  • 2 fisioterapeutas
  • 1 fisioterapeuta do Real Madrid
  • 1 analista de equipas adversárias
  • 1 técnico de audiovisuais
  • 4 técnicos de equipamentos
  • 1 presidente da FPF
  • 1 vice-presidente da FPF
  • 1 diretor da FPF
  • 1 diretor geral da FPF
  • 1 diretor da divisão desportiva da FPF
  • 1 diretor de operações
  • 3 observadores (não sei o que observam)
  • 2 assessores de imprensa
  • 1 organização (é este o cargo oficial, não faço ideia do que significa)
  • 1 oficial de segurança da PSP
  • 1 oficial de segurança da GNR (é para não ferir suscetibilidades?)
  • 2 chefes de cozinha
  • 1 representante da Nike (?)
  • 1 representante da Cosmos (WTF?, o que faz este? Leva a bolsinha com todos os bilhetes de avião?)
  • 1 fotógrafo

in Media Guide FPF

Ao todos, viajaram para o Brasil 36 indivíduos para que nada falte aos 23 jogadores convocados. Das duas, uma: ou assumimos que as pessoas que fazem parte da comitiva têm efetivamente um papel a desempenhar, ou então estão simplesmente a passar férias pagas à conta da FPF. Prefiro acreditar na primeira hipótese, e creio que Luís Pedro Sousa concordará comigo (caso contrário já o teria escrito nas suas colunas de opinião).

Por isso gostaria que os senhores jornalistas (Luís Pedro Sousa não foi o único) saibam viver com as opiniões sobre todas aquelas coisas que nos venderam como sendo fundamentais para que a seleção tenha sucesso, que vêm dos vários setores da sociedade civil, de gente com visibilidade mediática ou simplesmente pessoas anónimas como eu. Para todos os efeitos, é a nós que a seleção portuguesa está a representar. Não é um assunto que interesse apenas a jornalistas desportivos, dirigentes, jogadores e treinadores. Diz respeito a um país inteiro.

O que é triste é que, sendo jornalista desportivo, tenha preferido ocupar linhas a ironizar sobre quem fala sobre o assunto em vez de se dar ao trabalho de escrever sobre assuntos importantes que têm sido ignorados pela generalidade da imprensa.

Já agora, dispenso que jornalistas desportivos, uma classe carregada de "profissionais" que envergonham diariamente o seu código deontológico, incapazes de chamar os bois pelos nomes quando os factos o justificam plenamente, os primeiros a alinhar no folclore do desígnio nacional a bem da construção de audiências e vendas de jornais, que mataram o jornalismo de investigação para passarem a ser ferramentas de propaganda ao serviço de terceiros, que diariamente preenchem páginas de opiniões que ou são insonsas ou carecem de um mínimo de isenção, e que fizeram da especulação um modo de vida com o objetivo de faturar mais uns cobres, venham agora, do alto da sua imensa sabedoria, criticar aqueles que ousam dar a sua opinião nos espaços que têm ao seu dispor. Não só é pretensioso como, acima de tudo, não têm qualquer estatuto moral para o fazer.