quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O fundo da questão

                                                                                                                                            
Já todos sabemos que o futebol português é fértil em originalidades, infelizmente quase sempre pela negativa. Ontem tivemos o privilégio de assistir a mais um acontecimento singular: pela primeira vez um fundo sentiu-se na necessidade de fazer um longo comunicado para defender o seu bom nome - apesar de juntar os termos "fundo" e "bom nome" na mesma frase parecer um contrassenso.

Não quero com isto dizer que seja justo demonizar os fundos só por causa da sua reputação: da parte que me toca, e pela experiência que o Sporting tem tido, prefiro que o clube viva bem longe deles (mesmo que isso implique não podermos contar com jogadores em teoria mais talentosos), mas admito que podem ser úteis a curto prazo para quem trabalhe com eles. E, como em tudo na vida, haverá fundos com gente mais séria e outros com gente menos séria.

De qualquer forma, não podemos ser ingénuos: os fundos estão nisto por dinheiro, e estão a borrifar-se para os interesses dos clubes "parceiros" e das carreiras dos jogadores envolvidos. Um negócio, para um fundo, só pode ter um final feliz: garantir que são realizadas mais-valias, de preferência no mais curto espaço de tempo possível.

O comunicado que a Doyen escreveu ontem é patético e contraditório, provocador e, acima de tudo, revelador de um enorme nervosismo.

Como é sabido, já existe na UEFA alguma vontade política para banir as propriedades partilhadas de jogadores. A concretização dessa vontade será uma sentença de morte para os fundos como a Doyen, pois a esmagadora maioria dos valores de transações de jogadores envolve equipas europeias. E já correm primeiras páginas nos jornais desportivos britânicos sobre o braço de ferro entre o Sporting e a Doyen - precisamente o tipo de publicidade que os fundos desejam evitar.

Podem alegar que a Doyen está apenas a defender os interesses que lhe estão contratualmente assegurados. Sim, é verdade, mas será que interessa à Doyen que entidades de supervisão comecem a vasculhar os contornos do contrato estabelecido com o Sporting por Rojo?

Vamos recapitular o que sabemos:
  • O Sporting comprou Rojo ao Spartak Moscovo por €5,4M;
  • O Sporting cedeu 75% do passe à Doyen por €3M, incorrendo no prejuízo imediato de €1M (o Porto fez recentemente uma operação semelhante com Brahimi, precisamente com o mesmo prejuízo);
  • O Sporting tem que pagar 20% de mais-valias da venda ao Spartak (revelado na terça-feira por Bruno de Carvalho);
  • O Sporting, quer venda Rojo por €20M ou por €30M, recebe o mesmo montante, o que significa que existe algo no contrato com a Doyen que estabelece que o fundo terá direito à totalidade da verba acima de um determinado valor (revelado no comunicado de ontem da Doyen);
  • Se o Sporting não vender o jogador, terá que indemnizar a Doyen numa verba não especificada, mas considerável (revelado pela Doyen);
  • O Sporting poderá recomprar em setembro de 2015 o passe do jogador por valores bastante superiores aos que recebeu no momento da cedência (revelado por Bruno de Carvalho).

Tudo isto junto significa que, mesmo que Rojo saia pela cláusula de rescisão, o Sporting sairá sempre a perder dinheiro neste negócio. E também fica provado que o risco da Doyen é na realidade muito mais limitado do que à partida se poderia supor.

O caso Rojo, para além de revelar uma imensa irresponsabilidade dos dirigentes do nosso clube que aceitaram estas condições ruinosas, vem também demonstrar que os fundos não têm problemas em açambarcar a totalidade dos lucros por apenas uma parte do risco, caso isso lhes seja permitidos. E infelizmente, acredito que isso seja mais a regra do que a exceção, pois as dificuldades financeiras por que passam a generalidade dos clubes por toda a europa são mais que conhecidas, e a concorrência desportiva não dá tréguas. Estando os fundos disponíveis para financiar transferências, os clubes que a eles recorrerem têm uma vantagem competitiva imediata, mesmo sabendo que muito provavelmente estarão a prejudicar o seu futuro a médio / longo prazo.

A UEFA não tem a obrigação de proteger os clubes da estupidez dos seus dirigentes, mas não pode ignorar que a existência dos fundos privilegia quem com eles negoceia, colocando em causa o equilíbrio das competições e o futuro dos próprios clubes. E sem clubes, as competições da UEFA também sofrerão.

É claro que no meio de tudo isto ainda surgem histórias com um final feliz para todos, como a de Mangala. Aliás, o comunicado da Doyen começa precisamente a destacar os elogios que o Porto lhes tece pelo seu papel na transferência do jogador francês para o Manchester City:
Na declaração enviada pelo F. C. Porto à FA destacamos o seguinte parágrafo: "having Doyen an exemplary behaviour during all the referred period of time".

Não é de admirar este elogio: segundo uma versão que para aí corre, a Doyen "abdicou" de €8M a favor do Porto, satisfazendo-se apenas com €5M dos €13M a que teria direito. Duvido no entanto que a única contrapartida que o Porto terá dado em troca desses €8M tenha sido uma simpática referência numa missiva a uma federação que proíbe que os fundos possuam parcelas dos passes dos jogadores dos seus clubes. E aqui poderíamos entrar nas questões da transparência, mas o post já vai demasiado longo.