terça-feira, 23 de setembro de 2014

O princípio do fim dos fundos


O Guardian fez ontem um oportuno e interessante artigo em que aborda a crescente influência de Jorge Mendes no futebol mundial, apontando para os óbvios e preocupantes conflitos de interesse que decorrem da ação de um agente que, em vez de exercer a sua atividade com o objetivo de defender unicamente os interesses dos seus jogadores, usa a sua influência em negociações de transferências e renovações de contrato para se apoderar de parcelas dos passes dos atletas que representa. Queres renovar com o meu jogador? Então passa para cá parte do passe. Que sentido faz isto?

Como é evidente, quando Jorge Mendes passa a ser proprietário de parte dos direitos financeiros de um jogador, seja através da Gestifute ou através do fundo QFIL, não lhe interessará que esse jogador permaneça muito tempo no mesmo clube. O dinheiro faz-se movimentando jogadores, mesmo que isso não seja do interesse imediato do clube que detém os direitos desportivos. Olhe-se para Falcao, por exemplo. Do Porto para o Atlético, daí para o Mónaco, e agora em Manchester.

Hoje, o Guardian alarga o tema para a questão geral dos fundos de investimento, revelando num novo artigo que a UEFA planeia, já na próxima época, iniciar uma fase de transição para que os clubes tenham tempo de se readaptar e que levará, no final, à proibição de utilização nas competições europeias de jogadores que não sejam detidos na totalidade pelos clubes. 

Citando o secretário geral da UEFA, Gianni Infantino, o Guardian acaba por reduzir de forma notável o estado de promiscuidade e falta de transparência que a crescente influência dos fundos trouxe para o futebol - e em particular para a relação clube - jogadores:
"Ameaça a integridade das competições desportivas, causa danos à estabilidade contratual, perverte a relação de confiança que deve existir entre um jogador e o clube para quem trabalha, cria conflitos de interesses, significa que os jogadores têm menos controlo sobre o desenvolvimento das suas próprias carreiras, mantém os clubes num ciclo vicioso de dívida e dependência, e prejudica a imagem geral do futebol." 

Esta preocupação da UEFA não é nova e já vem do tempo em que Tevez e Mascherano foram para a Premier League através de um fundo de investimento - e que esteve na origem da proibição de jogadores detidos por terceiros na liga inglesa - mas parece que neste momento é apenas uma questão de tempo para que estas relações perigosas deixem de ter espaço para crescer nas competições internacionais.

É claro que em Portugal as mudanças serão muito mais difíceis de concretizar. Num país em que nem sequer se consegue implementar a utilização de um spray para se marcar as barreiras em livres, será utópico esperar que os responsáveis pelo nosso futebol tomem ações concretas para acompanhar esta evolução - em que se tentam acabar com coutadas como as de Jorge Mendes - ainda mais quando a proximidade entre o agente e muitas das figuras de topo do futebol nacional é inegável.

De qualquer forma, se a UEFA levar por diante a proibição nas competições internacionais, será uma machadada decisiva para acabar com esta questão dos fundos mesmo em Portugal:
  • não interessa aos clubes construírem plantéis em que parte dos jogadores são apenas para consumo interno;
  • não estou a ver que jogador com valor aceitará ser transferido para um clube português, sabendo que não poderá participar na Liga dos Campeões;
  • A liga portuguesa, por si só, não vale de muito enquanto plataforma de valorização, o que dificultará a capacidade de retorno rápido dos investimentos feitos pelos fundos.

É impossível desligar o episódio Sporting / Rojo / Doyen do que estamos agora a assistir. Não digo que seja um caso de causa-efeito imediato, mas foi a atitude disruptiva do Sporting que colocou definitivamente o papel dos fundos na ordem da agenda internacional, suportada depois pelo êxodo de estrelas do Mónaco contra a vontade da direção do clube francês.

Curioso que, em vez de tentarem perceber as razões que levaram o Sporting a anular o contrato com a Doyen, a maior parte dos nossos experts preferiu não compreender o que realmente estava em causa (por falta de inteligência ou falta de vontade) e optou por usar essa atitude como mais uma sentença condenatória de Bruno de Carvalho. Felizmente que lá fora souberam entender o cerne da questão.