segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

"Os sete pecados capitais do futebol revelados pelo Football Leaks", por Pippo Russo

Interessantíssimo artigo de Pippo Russo, onde é feito um resumo das revelações publicadas no último mês a partir dos documentos do Football Leaks. O original, publicado no site Lettera43, pode ser lido aqui: LINK.



Os sete pecados capitais do futebol revelados pelo Football Leaks
Paraísos fiscais. Valiosas comissões. Clubes-ponte e jogadores de cartão. Prémios milionários absurdos para os intervenientes. Import-escort. Promiscuidade. E a FIFA a lavar as mãos. Os vícios mais graves de um sistema enfermo. 

O futebol do turbo-capitalismo financeiro tem os seus pecados capitais, e o Football Leaks está a revelá-los um a um. Os documentos publicados pelo consórcio European investigative collaborations (EIC) ilustram um cenário repleto de personagens que, quando se trata de fazer sair do futebol dinheiro gerado no futebol, não poupam nenhum estratagema. O importante é atingir os objetivos, sem quaisquer escrúpulos morais. Aqui ficam os sete pecados capitais do futebol que nos permitem perceber a profundidade do vírus e o risco que existe em se tornar irremediável.


Pecado número 1: offshoring

Transferir riqueza para um paraíso fiscal é crime? Aqui está uma interrogação por responder, que dividirá opiniões entre os que defendem a inocência ou a culpabilidade de quem o faz. Mas seja qual for a vossa opinião na matéria, é um facto que o futebol recorre frequente e voluntariamente ao offshore. Se fizessemos uma lista de favoritos para a Champions League dos paraísos fiscais, a tabela seria clara: liderança isolada para as Ilhas Virgens Britânicas (praticamente sem direito a prémio pelas companhias de apostas), Jersey, Panamá, Nova Zelândia, Malta, Luxemburgo, Liechtenstein. E sem referir países que, em matéria fiscal, fingem ser normais, mas que não o são de todo, como a Irlanda, Holanda e Uruguai.

ESTRATAGEMA POUCO REFINADO. Nesta frente, a máquina organizada pelo super-agente português Jorge Mendes e pelos seus conselheiros é vasto e complexo. Mas não é particularmente refinado, como ficou a saber a empresa de advogados Senn Ferrero, chamada para controlar os danos após a intervenção dos inspetores fiscais espanhois. Foram dramáticas as trocas de pareceres legais à volta do eixo lusitano, tal como se soube pelo leak publicado pelo EIC.

As preocupações são sobretudo provenientes dos rendimentos dos direitos de imagem de Cristiano Ronaldo: 150 milhões pagos a CR7 ao longo de um período que vai de 2009 a 2020. Dinheiro enviado para offshores que está agora a ser investigado pelo fisco espanhol. E considerando a mão pesada que foi usada em casos similares pela justiça espanhola nos casos de Messi e Neymar, percebe-se o motivo da inquietação que se abateu nos escritórios da Praça Bom Sucesso, no Porto, sede da Gestifute.

O SPECIAL ONE É RECORRENTE. Os documentos publicados pelo Football Leaks contam que, entre os clientes do super-agente português, não é apenas o Bola de Ouro (será que também será depositada em Tortola?) que está envolvido num esquema de offshoring. Também estão envolvidos Ricardo Carvalho, Pepe e Fábio Coentrão. E depois, obviamente, ainda há José Mourinho. Aquele que é o “Special One” quis acrescentar uma peça ao esquema, ao abrir um trust na Nova Zelândia. Foi isto que acabou por chamar as atenções. Entre outras coisas, o homem de Setúbal é recorrente. Uma investigação anterior do fisco espanhol já lhe tinha custado o pagamento de 5,5 milhões de euros entre taxas e multas acumuladas. Por qué?

Todos os clientes da Gestifute apenas têm um elemento em comum na sua carreira: estiveram, ou estão ainda, no Real Madrid. O clube que também conta com o centrocampista croata Luka Modric. Para ele não há nada de ilhas exóticas, preferiu apoiar-se num mais próximo Luxemburgo. Aí fundou uma sociedade gerida pela mulher Vanja, e a que chamou de Ivano, como o filho. Tudo em família, para colocar os rendimentos provenientes dos direitos de imagem e pagar apenas 1% de impostos, quando teria de pagar 51% em Espanha.

À PROCURA DO PARAÍSO. Para além dos campeões do Real Madrid, existem outros com o mau hábito de andar à procura de paraísos para o seu dinheiro. Como é exemplo a história de Paul Pogba, que para usufruir dos seus direitos de imagem teve que se libertar do seu antigo agente Oualid Tanazefti. Passando para os cuidados de Mino Raiola, o ex-jogador da Juventus viu os seus direitos de imagem serem transferidos do Luxemburgo para Jersey.

Entre quem paga esses direitos está também a Adidas, que parece não ter tido quaisquer problemas em mudar o destino do dinheiro no momento de fazer o pagamento. No caso do centrocampista argentino Lucho Gonzalez, a marca das três listas enviou o dinheiro para o Panamá: três pagamentos de 50 mil euros feitos entre 2010 e 2012. E entre tantos futebolistas com o vício dos offshores, destaca-se uma exceção. A de Karim Benzema, o bad boy do futebol francês.

KARIM, O "PATRIOTA FISCAL". Deixado de fora da convocatória pelo selecionador Didier Deschamps no Euro 2016 por causa do escândalo do vídeo de cariz sexual (com chantagens à mistura) de que foi vítima o companheiro de seleção Mathieu Valbuena, Benzema comportou-se de modo oposto em relação aos outros jogadores do Real Madrid citados anteriormente. Os seus rendimentos derivados dos direitos de imagem foram pagos a uma empresa chamada Best of Benzema, com sede legal em França, com taxações normais para os países europeus. Por isto, o site Mediapart, um dos parceiros da EIC, ajudou a recuperar a imagem do jogador chamando-o de "patriota fiscal".


Pecado número 2: hiper-intermediações

No mundo do futebol parece cada vez mais comum que existam negócios que têm, como único objetivo, gerar o pagamento de intermediações. Isso confirma-se, dando uma espreitadela aos documentos revelados. Um dos casos em que o Espresso, parceiro italiano do EIC, centrou as suas atenções foi a do centrocampista espanhol Rubén Pérez del Mármol. Esteve seis meses no Torino, na primeira metade da época 2014-15, sendo depois, em janeiro de 2015, devolvido ao Atletico Madrid, que imediatamente o pôs a rodar por empréstimo no Granada (clube agora controlado pela família Pozzo, também proprietária de Udinese e Watford).

NADA PARA ALÉM DE COMISSÕES. Os adeptos grenás dificilmente se recordarão da sua passagem pelo clube, já que o médio participou apenas seis partidas, sempre como suplente, num total de 92 minutos jogados. Bem, por esses 92 minutos o Toro de Urbano Cairo pagou 500 mil euros, depositando o dinheiro numa conta corrente de Vaduz, Liechtenstein. Poucos dias depois, uma parte desta verba (125 mil euros) voltou para Itália, tendo como destinatário a sociedade Agb, do agente Giuseppe Bozzo. Tudo isto, no contexto de um negócio com vários indícios a apontar para a Doyen Sports Investments, o fundo com sede legal em Malta. Mais uma para a série: nada para além de comissões.


Pecado número 3: os clubes-ponte e os jogadores de cartão

Um dos mecanismos preparados pelos protagonistas da economia paralela do futebol é o das transferências de jogadores através de clubes que se tornam proprietários dos passes sem que algum dia os vejam passar por lá. Falamos, neste caso, dos bridge clubs (clubes-ponte) e dos jogadores de cartão. Esta última designação foi utilizada pela revista The Black Sea, a propósito da alvunha dada aos jogadores que passaram pelo controlo do Apollon Limassol, clube ligado ao super-agente israelita Pini Zahavi e ao mais hábil dos seus alunos, Fali Ramadani.

IMPLICADA A FEDERAÇÃO SERVIA. O artigo assinado por Costin Ştucan e Michael Bird menciona os seguentes atletas: Luka Jovic, Mijat Gacinovic, Andrija Zivkovic, o napolitano e ex-torinista Nikola Maksimovic, Nikola Aksentijevic, Marko Pavlovski e Cristian Manea. E à volta destas movimentações a partir do Apollon se entrelaça uma densa teia que implicam figuras como o ex-presidente da federação sérvia Zvezdan Terzic, o advogado israelita Ehud Shochatovitch (que trabalha para Pini Zahavi), e ainda duas empresas com sede legal no Canadá e Delaware (USA), proprietárias dos direitos económicos de Gacinovic.


Pecado número 4: rentabilidade obrigatória

Há uma secção do Football Leaks a que todos se rendem perante as evidências: o futebol nunca mais voltará a ser o que era. Isto, com respeito às cláusulas absurdas que garantem aos jogadores determinados benefícios económicos suplementares, apenas por fazerem aquilo que não é mais do que a sua obrigação. E, por vezes, nem isso, sequer. Por exemplo, o Tottenham Hotspur paga ao guarda-redes francês Hugo Lloris um prémio por jogo em caso de vitória (7 mil libras), mas também em caso de derrota (3.500 libras).

Nesta frente, quem se demonstra um fora-de-série na imposição de cláusulas bizarras aos clubes é Mino Raiola. O contrato entre o seu cliente Mario Balotelli e o Liverpool previa um prémio de 1 milhão de libras no final de cada época caso o jogador tivesse demonstrado uma boa conduta. E no que consiste esta boa conduta? Em não ser expulso mais de três vezes durante a época, e em não cuspir nos adversários, por exemplo.

NEY E OS AUTÓGRAFOS DE OURO NOS CROMOS. A Neymar, o jogador brasileiro do Barcellona, a editora Panini pagou 50 mil dólares para colocar a sua assinatura em 600 cromos. Isto resulta em cerca de 83 euros por cada autógrafo. Também notável é a cláusula que diz respeito a Sergio “El Kun” Aguero: por cada 15 golos marcados com a camisola do Manchester City, o Atletico Madrid (sua ex-equipa) encaixa 250 mil euros.


Pecado número 5: import-escort

O que terá sucedido naquela noite em Miami, em que o CEO da Doyen Sport Investment, Nélio Lucas, decidiu organizar uma noite picante em benefício de Adriano Galliani e do presidente do Real Madrid, Florentino Perez, para vender o futuro interista Geoffrey Kondogbia? Quem saber?... Obviamente que os diretamente envolvidos o negam, mas sobram as embaraçosas trocas de mensagens WhatsApp entre o próprio Nélio Lucas e Arif Efendi, outro personagem de destaque do fundo.


Pecado número 6: promiscuidade

No mundo da economia paralela do futebol são muitas as personagens com a capacidade de agregar figuras cujo perfil aconselharia que se mantivessem separados. A promiscuidade impera. E nesta frente, quem poderá servir melhor de exemplo do que Jorge Mendes? Do Football Leaks, ficámos a saber os interesses comuns com o proprietário do Monaco, o oligarca russo Dmitry Rybolovlev. É dele metade do fundo Browsefish (registado no Chipre e especializado na aquisição de percentagens de jogadores do seu Monaco), cuja ação gera uma grande interrogação: quem compra, quem vende e quem ganha com tudo isto?


Pecado número 7: inércia
Mas perante todas estas revelações, qual é a reação de quem governa o futebol? Quem fez uma boa síntese (por assim dizer) foi Gianni Infantino, presidente da FIFA. Que, ao ser entrevistado pela Mediapart, respondeu com uma série de "vamos ver", "vamos refletir", "vamos analisar". E quando lhe perguntaram sobre o que sucedeu na FIFA ao longo dos últimos anos, respondeu: "Não estava lá". Agora que está, parece que dorme.