terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Para que serve mesmo a CMVM?

A questão não é nova. O controlo que a CMVM faz das contas apresentadas pelas SAD's de futebol é algo de patético. São vários os indícios de que os relatórios que os clubes divulgam não refletem com rigor o seu estado financeiro real, mas, aparentemente, a CMVM não quer saber da nada. De vez em quando dá sinais de vida - como quando suspendeu a negociação das ações do Sporting em bolsa quando rebentou a notícia de que Jorge Jesus se preparava para assinar -, mas, na maior parte dos casos, prefere fingir-se de morta.

Recentemente, tivemos dois bons exemplos.

Em agosto passado, o Porto assegurou o empréstimo de Óliver Torres, referindo a existência de uma opção de compra que poderia ser exercida até finais de 2017. O valor dessa opção não foi especificado.


No princípio deste mês, o diretor de comunicação do Porto referiu, no Porto Canal, que essa opção era, afinal, obrigatória. Deslize inadvertido ou não, o que é facto é que não tardou para que a SAD portista emitisse novo comunicado, referindo que tinha exercido a opção de compra por 20 milhões de euros.


20 milhões. Não falamos de trocos. Para uma SAD com problemas financeiros bem conhecidos - que culminaram num prejuízo de 60 milhões no final da temporada passada -, a omissão de um investimento desta ordem de grandeza deveria, no mínimo, levantar o interesse da CMVM. 

Aliás, toda sequência de acontecimentos e o conteúdo do documento enviado à CMVM apontam para que o objetivo do Porto nesta comunicação tenha sido, somente, evitar ser apanhado na mentira. Dizem que exerceram a opção, sem nunca dizerem que era obrigatória, mas, ao mesmo tempo, dizem que o contrato apenas será efetivado após o final do empréstimo. Ou seja, o comunicado não altera nada na prática, mas é uma forma de reescrever a história. O que fez o regulador? Comeu e calou. Perante esta atitude, não há motivo algum para que as SAD's não voltem a cometer omissões numa situação futura semelhante.

O outro exemplo recente tem a ver com a informação dada pelos clubes sobre os reais direitos que têm sobre os seus atletas. Em particular, o caso de Ederson. Na semana passada, Pedro Sousa fez o seguinte comentário a uma possível venda do guarda-redes brasileiro após o final da presente temporada:


De assinalar que Pedro Sousa não é o primeiro a mencionar que o Benfica não terá o benefício total de uma futura venda de Ederson, o que aumenta a possibilidade de existir um fundo de verdade nesta notícia.

A única referência que o Benfica fez em relação à propriedade do passe de Ederson está no excerto que podem ver de seguida:

R&C SLB SAD, 2015-16, página 133

Sendo verdadeira a informação dada por Pedro Sousa, isso não quer dizer necessariamente que o Benfica esteja a mentir. Por exemplo, o Sporting era proprietário de 100% dos direitos económicos de Slimani, mas o empresário do jogador tinha direito a 20% das mais-valias de uma futura transferência. A diferença é que o Sporting sempre publicou (e bem) essas cláusulas.

R&C SCP SAD, 2015-16, páginas 146 e 184

Não coloquei aqui todos os valores contingentes a pagar e a receber que constam do R&C do Sporting, porque ocupam várias páginas, tal o detalhe colocado. O Benfica, simplesmente, não revela nada.

Ou seja, acredito que o R&C do Benfica não mente (é normal que a SAD detenha 100% dos direitos económicos, porque o Benfica contratou Ederson já depois de a FIFA ter proibido a partilha de passes com terceiros - o que significa que não poderiam fazê-lo com Jorge Mendes), mas poderemos estar perante mais um caso de omissão.

Não seria a primeira vez que o Benfica seria apanhado numa omissão grave. Relembro o episódio da operação de factoring para o recebimento dos valores da venda de Bernardo Silva ao Monaco. O Benfica omitiu nos seus relatórios e contas a transação feita com a XXIII Capital, como ficou provado por A+B neste post: LINK.

Perante isto, é legítimo que se pergunte quantas mais situações destas o Benfica não revela. Quantos jogadores têm daquelas cláusulas que Vieira gosta tanto de referir en passant? No caso de Ederson apenas, 50% de uma potencial venda pode ser coisa para valer 15 ou 20 milhões. E se houver outros? Quantas dezenas de milhões de euros contingentes poderá ter o Benfica um dia que pagar?

São vários os exemplos em que o Benfica varre assuntos delicados para debaixo do tapete. As acções não coincidem, frequentemente, com o discurso e as contas. Domingos Soares Oliveira disse em outubro que o Benfica não precisava de vender, mas Vieira deve ter batido um recorde de milhas acumuladas em companhias aéreas com as viagens a Londres, Paris e China, a reboque de Jorge Mendes, para tentar transferir jogadores seus. Até que ponto as contas traduzirão o estado financeiro real da SAD?

Resta saber por que razão a CMVM, perante casos destes, não pede esclarecimentos mais específicos. Ou será que também aqui o emblema dita a tolerância com que uns e outros são tratados?