terça-feira, 9 de janeiro de 2018

O negócio Dálcio

No fim-de-semana passado, apareceu nas redes sociais uma imagem de pagamentos efetuados pelo Benfica ao Belenenses: a 24 de março de 2015 houve um pagamento de 307.500€, e a 8 de junho de 2015 houve um segundo pagamento de 430.500 euros. No total, o Benfica pagou ao Belenenses 738.000 euros. 

(via @j7seabra)

A polémica relacionava-se com o facto de estas datas serem próximas às datas em que o Belenenses defrontou o Benfica (18 de abril) e Porto (17 de maio), e de poderem estar relacionados com o pagamento de favores pouco lícitos. O Belenenses não tardou a reagir e esclareceu que as verbas pagas eram referentes à transferência do jogador Dálcio.


Após a reação do clube, foram colocados na internet alguns contratos celebrados entre Benfica e Belenenses, entre os quais se encontra o de Dálcio. Conforme seria de esperar, os valores da transferência batem (mais ou menos) certo com os dos pagamentos - seria preciso muito desleixo para registar na contabilidade pagamentos de transações inexistentes. Já sabemos que coisas dessas - e não estou a dizer que o caso Dálcio é um desses casos -, quando acontecem, são feitas em cash para "manter o máximo de confidencialidade e sigilo", conforme explica o anexo das avenças a jornalistas que Janela afirma nunca ter enviado. No entanto, as particularidades do negócio (que não envolveu apenas Dálcio) realizado entre Belenenses e Benfica merecem que se olhe com atenção para aquilo que foi assinado.


O negócio Dálcio... que poderia ter sido o negócio Ricardo Dias ou o negócio Fábio Nunes

No dia 16 de fevereiro de 2015, o Benfica adquiriu ao Belenenses o direito de opção sobre um atleta dos seus quadros. Que jogador, perguntam vocês? Essa é a primeira singularidade do negócio: ainda não estava definido quem seria o jogador. Seria um... de entre três.


Dálcio (na altura com 19 anos, utilizado maioritariamente como extremo) era um dos três jogadores cuja carreira vinha a ser acompanhada pelo Benfica. Os outros eram Ricardo Dias (médio defensivo que, à data, estava a uma semana de fazer 24 anos) e Fábio Nunes (utilizado nessa época como extremo, tinha 22 anos).


Estranha escolha de acompanhamento de carreira por parte de uma equipa do nível do Benfica, visto que era um conjunto de jogadores bastante heterogéneo, quer ao nível das idades, quer ao nível das posições no terreno: a única coisa em comum que existe entre os três é que nenhum deles figura no top 13 dos jogadores mais utilizados nessa época pelo Belenenses.

Minutos por jogador na Liga 2014/15 (fonte: zerozero.pt)

Em troca da aquisição de 50% dos direitos desportivos de um e só um destes três atletas, o Benfica comprometeu-se a pagar a pronto ("na presente data") a quantia de 300.000 euros.


Mantendo-se o jogador escolhido vinculado ao Benfica nas seis épocas seguintes, então o Belenenses terá direito a um bónus adicional de 700.000 euros.

Relembro que o primeiro pagamento do Benfica foi de 307.500 euros (o que não coincide com o quadro dos pagamentos extraídos do ficheiro SAF-T: os 300.000€ + IVA deveriam corresponder a 369.000€) e realizou-se a 24 de março de 2015, ou seja, mais de um mês depois da assinatura deste contrato. Em função do que vimos anteriormente, esse pagamento não terá sido referente a Dálcio, mas até dou isso de barato: vamos assumir que entretanto houve um aditamento que baixou o valor para 250.000 euros (que, com IVA, dá os tais 307.500€) e que a fatura só chegou ao Benfica um mês mais tarde, ou que tenha havido algum encontro de contas. Não coloco a hipótese de ter havido backdating do contrato, porque isso, como se sabe, seria ilegal.

Adiante.

O futuro imediato do jogador a transferir também ficou definido à partida: caso não ficasse no plantel principal do Benfica, então teria de ser emprestado ao Belenenses na época seguinte.


Considerando a utilização dos jogadores e o plantel que o Benfica possuia na altura, as probabilidades de qualquer um destes jogadores ficar no Benfica seriam ínfimas. Na prática, isto era uma garantia quase certa de que o Belenenses continuaria a contar com o atleta na época seguinte, recebendo 300.000 euros (mais IVA) pelo incómodo.

De referir que este mesmo contrato assegura que o Belenenses, caso não tenha entretanto abdicado dos direitos aqui estipulados, terá sempre a receber do Benfica um adicional mínimo de 700.000 euros, seja em caso de venda (independentemente do valor), seja em caso de término de contrato do jogador sem renovação, ou, como já tínhamos visto mais acima, ao fim de seis anos caso o jogador se mantiver ligado ao Benfica.


Continuando.


A cláusula anti-teoria da conspiração

Para os maluquinhos que pudessem ver nesta transação algo mais do que uma simples transferência de direitos, o contrato inclui esta deliciosa cláusula:


Portanto, os clubes garantem-nos que nada foi combinado entre si para além do que está estipulado neste contrato tão singular. Ufff, que alívio, ainda bem que deixaram isso em pratos limpos...


O Benfica adquire mais 25% dos direitos económicos de Dálcio

Apesar de no contrato acima estar estabelecido que o Benfica tinha o intervalo de datas entre 7 e 15 de julho para exercer a opção, os responsáveis encarnados não quiseram esperar tanto tempo e acabaram por escolher o jogador Dálcio antes desse prazo. Em maio de 2015, o jornal O Jogo já noticiava que o Benfica iria deixar o atleta mais um ano no Belenenses - que, sabemos agora, era algo que estava previsto contratualmente.


Uma semana mais tarde, mais concretamente no dia 3 de junho de 2015, o Benfica quis adquirir mais 25% dos direitos económicos de Dálcio, de forma a ficar com um total de 75% por mais 350.000 euros.


Ficou combinado que o pagamento seria feito no prazo de 48 horas. Aqui, sim, os valores batem certo com os dados de pagamentos apanhados no ficheiro SAF-T, que contêm uma entrada de 430.500 euros (350.000 euros + IVA) no dia 8 de junho (três dias úteis após a assinatura do contrato).


Dálcio viria a cumprir a primeira metade da época de 2015/16 no Belenenses, conforme o previsto, mas a sua escassa utilização (apenas 124 minutos na Liga) terá levado a que o jogador acabasse por ser dispensado e passasse para o Benfica B na janela de transferências de janeiro. Em 2016/17 o jogador permaneceu no Benfica B, e em 2017/18 foi emprestado ao Rangers, onde registou um único minuto de utilização até ao momento.


Resumindo

Todo este processo faz lembrar as opções de compra que o Benfica adquiriu ao Atlético Madrid - 4 milhões de euros que, na prática, não mais serviram do que permitir aumentar artificialmente o montante da venda de Gaitán -, pois envolveu o pagamento de verbas ao Atlético em contrapartida de algo que o clube não tinha aparente necessidade.

Este negócio com o Belenenses começou pelo pagamento de 300.000 euros por um jogador a definir. A única conclusão que se pode tirar é que não queriam realmente ninguém - um interesse sério pressuporia que o contrato tivesse um nome específico, enquanto a opção de escolha entre três jogadores revela uma certa indiferença. O único reflexo real de tudo isto foi o Belenenses receber algumas centenas de milhar de euros que, ao que se dizia na altura, faziam imensa falta para pagar salários.

Em junho repetiu-se a história, com o pagamento de 350.000 euros adicionais em contrapartida de 25% dos direitos económicos de um jogador que, sabia-se à partida, continuaria no Belenenses. Mais uma vez, um balão de oxigénio para a tesouraria que a administração da SAD terá visto com muito bons olhos.

Da mesma forma que já tinha acontecido um ano antes, mais concretamente em abril de 2014, quando o Benfica adquiriu o direito de preferência sobre seis jogadores do Belenenses ou, em alternativa, o direito de opção de 30% dos direitos económicos dos mesmos seis jogadores por 600.000 euros pagos a pronto. Surpreendentemente ou talvez não, nenhum desses direitos de preferência viria a ser acionado pelos encarnados.

Em duas épocas consecutivas, o Benfica funcionou como pronto-socorro da tesouraria do Belenenses em momentos críticos da temporada em que as receitas são mais escassas. Junte-se isto aos acordos de cavalheiros que foram deixando alguns jogadores-chave do Belenenses fora das partidas contra o Benfica, e consegue-se encontrar alguma lógica no facto de os encontros entre estes dois clubes parecerem meros amigáveis quando comparados com os confrontos que opõem o Belenenses aos outros grandes...

SLB 7V (27-0); SCP 4V 3E 2D (14-11); FCP 5V 3E (15-2)