sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Benfica TV e a ética

A ideia de transmitir jogos oficiais de um clube num canal detido por esse clube é uma novidade a nível mundial. Os apoiantes designam a experiência como pioneira, os detratores chamam-na de duvidosa e arriscada. O que é indiscutível é que está muito mais em causa do que a simples transmissão de 15 jogos de futebol ao longo de 365 dias.


As faces da Benfica TV

Eu, pessoalmente, sempre gostei de ouvir o Hélder Conduto e o Valdemar Duarte. Não sabia quais eram as suas cores clubísticas, o que é bom sinal para um jornalista que se pretende isento. Agora ao irem para a Benfica TV estão-se a expor, como já aconteceu com jornalistas contratados para os departamentos de comunicação dos clubes, como o Pedro Sousa ou o Rui Cerqueira.

Estou na expetativa para saber qual será o nível de parcialidade dos seus comentários. É perfeitamente natural que se inclinem a favor do Benfica -- o que já acontece com TODOS os jornalistas quando comentam ou relatam um jogo entre uma equipa portuguesa e uma estrangeira -- mas, pelo que me habituei a ouvir deles, estou à espera que na análise de lances polémicos, enquanto jornalistas profissionais, sejam capazes de serem íntegros. Bem mais do que um Manuel Queiroz ou um Bernardino Barros qualquer.

Questões éticas

Tem sido evidente a preocupação de muitos jornalistas, comentadores e dirigentes adversários sobre a preservação da verdade desportiva, nomeadamente por causa das repetições e os efeitos sobre possíveis castigos baseados nas imagens da transmissão. É uma preocupação legítima, já que a isenção não será certamente a prioridade nº1 da Benfica TV, independentemente da qualidade dos jornalistas contratados.

Temos por isso tido a oportunidade ouvir e ler muita gente preocupada com esta questão. Por exemplo, António Tadeia, numa crónica para o DN entitulada A televisão, a ética e a receita, da qual vou retirar alguns excertos.
Os observadores aplaudiram o que presumiam ser um final de um regime próximo do monopólio, mas a mim a questão causa-me urticária por várias razões. Éticas e comerciais.
Primeiro, as éticas. (...) que garantia temos de que a seleção e edição das imagens venham a ser feitas com a imparcialidade necessária para que sirvam de prova, por exemplo, em inquéritos disciplinares como o que castigou Insúa na época passada? Como é evidente: nenhuma!
Depois, as comerciais. Permitir aos clubes que negoceiem os seus próprios direitos televisivos é, está provado, enfraquecer a posição global em favor da posição dos mais fortes.
Concordo com as questões éticas que Tadeia menciona. No entanto, em relação às razões comerciais apontadas, já nem tanto. Na minha opinião, se a negociação dos direitos televisivos fossem centralizados nunca seriam atribuídos a outro operador que não a Sport TV. Dificilmente outro operador teria capacidade financeira e influência de bastidores no submundo do futebol para se colocar à frente da Sport TV.

Houve no entanto uma coisa que Tadeia se esqueceu de referir. Todos conhecemos António Tadeia da RTP, mas ele também escreve no DN e faz crónicas diárias na TSF. DN e TSF que são detidas pela Controlinveste (também conhecida por Olivedesportos) que, curiosamente, também detém O Jogo e a Sport TV.


Diria a ética e o bom senso que Tadeia poderia fazer uma declaração de interesses à partida, sendo assalariado de alguém que está interessado no insucesso da Benfica TV, ou então que se abstivesse de falar no assunto. Enfim, como alguém disse uma vez, causa-me urticária.

E como o mundo dos órgãos de comunicação social está cada vez mais centralizado em grandes grupos, é difícil confiar na generalidade das opiniões que saem dos jornais e rádios. Porque se ao grupo Controlinveste é conveniente boicotar a Benfica TV, a outros grupos de media concorrentes se calhar é benéfico que a Controlinveste saia mal desta novela.

Portanto, o melhor é não dar grande relevância aos opinion-makers da nossa praça, porque a independência total em relação a este tema é coisa que dificilmente existirá.


Lança espetada no sistema

O que também é indiscutível são os efeitos que isto terá no chamado "sistema". Joaquim Oliveira sempre foi visto como um dos homens do "sistema". Esta conotação já vem de trás dos tempos em que a Agência Cosmos patrocinava viagens de árbitros ao Brasil (Agência Cosmos, que faz parte também do universo Controlinveste), foi ganhando poder com negociação de direitos televisivos de futebol e publicidade estática nos estádios. Hoje em dia até, pelos vistos, é ele que paga o carro onde andam o presidente da FPF e dos árbitros.

Enquanto se portar bem, Vítor Pereira sabe que não lhe faltará uma assistência em viagem de qualidade se o seu carro avariar


Há uma coisa que é inevitável: as receitas da Sport TV vão descer. Não sei quanto vai descer, mas se a qualidade da programação é afetada e os preços mantém-se na mesma, parece-me impossível que não existam clientes a desistir do canal. E não creio que a nova Sport TV Live seja capaz de angariar um número significativo de novos clientes. Quem vê futebol em Portugal tem um clube, e não vai pagar 10€ para ver 1 jogo por mês do seu clube e 3 dos outros. 

Considerando que a generalidade dos jornais e rádios só dão prejuízo devido ao minguar do mercado publicitário, qualquer queda de receita da Sport TV deverá ser dramática para a Controlinveste / Olivedesportos e, consequentemente, para Joaquim Oliveira.

É natural portanto que o "sistema", a existir, esperneie o mais que consiga.


Riscos e recompensas

A decisão de o Benfica acabar com a maior receita fixa do seu orçamento pode ser recompensadora, mas os riscos também serão grandes. As receitas de bilheteira aumentam ou diminuem em função dos resultados desportivos da equipa, e a partir de agora o mesmo irá acontecer com as receitas das transmissões televisivas. Se a equipa se sair bem no campeonato, o potencial de receitas será enorme, mas se a prestação desportiva desiludir serão muitos os adeptos benfiquistas que deixarão de assinar o canal. A questão da canibalização entre os Red Pass e a Benfica TV também é interessante.

Assim, os direitos televisivos juntar-se-ão à bilheteira e às mais-valias nas transferências de jogadores no conjunto das receitas que estarão dependentes dos resultados desportivos. Ou seja, neste momento, uma esmagadora fatia do orçamento do Benfica está dependente do facto de a bola entrar ou não na baliza. E isso é uma dinâmica que não transita de ano para ano. O Benfica pode ter uma época de sonho e angariar clientes e receitas, mas se nas 5 primeiras jornadas da época seguinte as coisas não correrem bem, o cumprimento de objectivos da Benfica TV estará seriamente comprometida.


Como avaliar o sucesso da Benfica TV?

Não será certamente pela qualidade apresentada enquanto canal televisivo. Para além do corte com uma das faces do "sistema", o sucesso da Benfica TV vai ser avaliado em função do número de assinantes. A grande pergunta é: de quantos assinantes precisa a Benfica TV para justificar o corte com a Sport TV, atendendo que esta ofereceu €22,2M / ano?

Em contas por alto, as receitas serão:
  • Assinantes Benfica TV
  • Publicidade
  • Venda de direitos de transmissão internacionais
Os custos virão de:
  • Liga inglesa - €2,6M / ano
  • Liga brasileira, grega e americana - valores não divulgados
  • Custos de pessoal (salários de jornalistas, apresentadores e técnicos)
  • Equipamento de transmissão de diretos
  • Despesas de funcionamento corrente
  • Comissão dos operadores de cabo
Ou seja, para fazer face aos valores conhecidos (liga inglesa e os jogos do Benfica)...

€2,6M + €22,2M = €24,8M

... e a receita dos assinantes...

10€ * 12 meses * nº assinantes = €24,8M

o que quer dizer que para cobrir esses €24,8M a Benfica TV precisa de ter 206000 assinantes. Como as receitas da publicidade (o mercado publicitário está completamente espremido) e direitos internacionais devem ficar muito longe dos custos das outras ligas, de pessoal, equipamento, despesas correntes e comissões, parece-me que o melhor é arredondarmos para 250000 assinantes a pagarem os 12 meses (apesar de supor que muitos assinantes irão cortar a subscrição durante os 3 meses de paragem de campeonato). Não vou entrar nas questões do IVA e outros impostos porque não sei se os valores pagos pelos direitos da liga inglesa e a oferta da Sport TV incluíam ou não IVA.

Segundo a notícia divulgada pelo Benfica, a 29 de Julho já existiam 100.000 assinantes, o que é um excelente sinal visto que a bola a sério para a Benfica TV só começa este domingo.

No entanto, terei dificuldade em acreditar nos números divulgados pelo Benfica. Estamos a falar de gente que não tem problemas em manipular os números para salvar a face. A credibilidade é uma coisa lixada, uma vez perdida jamais se recupera. Só com números divulgados pelos operadores é que poderei ficar confiante que estamos perante dados verdadeiros.

Conclusão

No ponto de vista da afronta ao sistema, a transmissão dos jogos pela Benfica TV será sempre uma decisão positiva. Resta saber se do ponto de vista económico será compensador. 

Aquilo que espero que vá acontecer é que o Benfica não irá conseguir cobrir na totalidade a oferta da Sport TV. No entanto, as receitas serão sempre superiores em relação aos valores do contrato que o clube tinha com a Sport TV até à época de 2012/13. Para além disso, acho que a queda das receitas da Sport TV será muito significativa.

A aposta tem os seus riscos, mas há uma coisa que é preciso não esquecer: se correr mal a qualquer momento o Benfica pode retomar as negociações com a Sport TV, que certamente esfregará as mãos de contente por recuperar os direitos desses jogos. Resta saber quem estará menos enfraquecido na mesa de negociações quando e se esse momento chegar.