segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

João Malheiro fala de João Malheiro

Qualquer animal de grande porte tem o seu parasita. É uma das leis da natureza. No entanto, essa é uma lei que o futebol soube replicar na perfeição.

Bruma tem o seu Bebiano. Pinto da Costa tinha o seu Luís Filipe Vieira, que entretanto cresceu o suficiente para ter as suas próprias carraças. Izmailov tem o seu Paulo Barbosa e o Porto tem agora o seu Izmailov.

Eusébio tinha João Malheiro.

João Malheiro, figura com que nunca simpatizei, foi dar ontem o seu testemunho ao programa Trio de Ataque sobre o pantera negra, enquanto seu biógrafo, conforme Hugo Gilberto fez questão de dizer ao apresentá-lo.

Hugo Gilberto começa por perguntar a João Malheiro se houve algum capítulo da vida de Eusébio que tenha sido mais especial. A resposta foi esta:

"Todos os capítulos da vida do Eusébio são capitulos especiais. A única coisa que poderei dizer hoje, que é um momento de tristeza profunda, estou a pé desde as 6 da madrugada com uma dor profundíssima, é sublinhar a enorme lisonja que tenho, que sinto, por ter como companheiro, sobretudo na última vintena de anos. Companheiro diário, companheiro do quotidiano, portanto desse ponto de vista eu sinto-me completamente realizado. E portanto, é um momento de tristeza... <interrompido por Hugo Gilberto>"

À falta de um capítulo marcante, e percebendo que João Malheiro não ia falar da vida de Eusébio pré-Malheiro, Hugo Gilberto pergunta depois se ao longo desses 20 anos Eusébio esteve ao mais alto nível.

"Eu percorri o país inteiro, percorri o mundo inteiro com o Eusébio nestes últimos 20 anos. Com exceção de um continente, por razões que eu nem saberei explicar, que foi a Austrália. De resto fui a todos os continentes com o Eusébio, andei por todo o lado. O João Gobern ainda agora falou do Yaschin, a última viagem que fiz com o Eusébio foi a Moscovo (...) O Eusébio adorava o Yaschin, tinha uma paixão enorme pelas grandes figuras do futebol, grandes e menos grandes. Mas essas figuras grandes do futebol, por exemplo o Pelé, com quem eu privei, Diego Maradona, com quem privei, Johann Cruyff, Franz Beckenbauer, Bobby Charlton, todos eles eu conheci através do Eusébio e todos eles nutrem pelo Eusébio um carinho (...) O Diego Maradona, connosco, e se calhar é a primeira vez que estou a dizer isto, disse na minha presença, sou testemunha, 'Eusébio, o maior foste tu, não foi o Pelé'. (...) Com Alfredo Di Stefano eu também estive em Espanha (...) e Di Stefano na altura questionou-me 'Onde está Eusébio?' (...)"

Foi comovente a sua resposta à pergunta seguinte de Hugo Gilberto, se Eusébio viveu a vida na plenitude.

"Completamente. Evidentemente aqui não estamos a falar só de futebol. Eu diria que o Eusébio foi de facto um jogador notabilíssimo, foi um atleta fantástico, um atleta soberbo. O que o Eusébio era no campo era também fora do campo. Eu que o acompanhava diariamente, repito, nos últimos vinte anos, o Eusébio, vamos dizer assim, também competia na vida, o Eusébio tinha um relógio biológico que não é o meu, não é o teu, não é a maioria dos espetadores que nesta altura nos estão a ver. O Eusébio deitava-se às 3, 4, 5 da manhã todos os dias, porque era a maneira de ele estar na vida. (...) O Eusébio viveu com uma intensidade quase sobre-humana, não sei se me faço entender. Para o comum dos mortais era impossível fazer a vida que o Eusébio fez. Ele tirou todo, todo o partido possível da vida à sua maneira, evidentemente, como eu sempre sustentei. O Eusébio é uma figura planetária, mas tinha um mundo muito pequenino, aqui em Lisboa. Ele quase que repetia tudo todos os dias, almoçava no mesmo restaurante, jantava no mesmo, o núcleo de amizades, o núcleo mais próximo, era praticamente o mesmo todos os dias, mas ele sentia-se feliz assim. Num mundo que era pequenino mas simultaneamente muito grande. Eu assisti a episódios verdadeiramente enternecedores quer em Portugal quer no mundo, com ele. Coisas absolutamente fantásticas que para mim constituem memórias absolutamente inesquecíveis e que me vão acompanhar em toda a minha vida."

Portanto, ficámos a saber que Eusébio tinha uma vida extraordinária porque tinha uma rotina, coisa que o comum dos mortais não tem.

Seguiu-se a pergunta sobre se Eusébio tinha consciência da fragilidade do seu estado, nos últimos dias.

"Tinha. Tinha, mas não dizia. (...) E nos últimos tempos eu acompanhei, evidentemente, esta última fase do Eusébio. Já hoje tive a oportunidade de dizer aqui na RTP, faz hoje 15 dias passei 13 ou 14 horas consecutivas com o Eusébio (...) almoçámos na margem sul (...) e jantámos e ceámos em Lisboa. O Eusébio dava grandes sinais de fragilidade física. Eu percebi isso, eu e aqueles que lhe éramos mais próximos, nomeadamente o António Simões que eu hoje acordei às 7 da manhã, o próprio Toni, ou Luís Filipe Vieira, o presidente do Benfica. Nós percebíamos isso (...) e o Eusébio fez a aposta na vida mesmo nos verdadeiros dias, e eu fui testemunha disso."

Eusébio demonstrava "grandes sinais de fragilidade física", mas o seu grande amigalhaço acompanhava-o em maratonas de 13 ou 14 horas em almoçaradas e jantaradas non-stop? Mas o que é isto, são estudantes de 20 anos na semana da queima das fitas?

A pergunta seguinte de Hugo Gilberto, a última, foi sobre se o nome do Estádio da Luz deve ser alterado para Estádio Eusébio da Silva Ferreira:

"Há um clima emocional ao qual eu não sou indiferente. (...) E essa possibilidade vale concerteza, mas é preciso amadurecer a ideia. (...) Eusébio é escolhido pela FIFA um dos dez melhores jogadores do mundo de todos os tempos. Eu ainda hoje falava para rádios e televisões brasileiras e argentinas, e referia justamente isso. (...) Mas a maior distinção, do ponto de vista enquanto biógrafo do Eusébio, e digo isto humildemente e não nessa condição, foi o facto da FIFA o ter distinguido como um dos dez melhores jogadores do mundo de todos os tempos."

Que este senhor não fez outra coisa que não fosse falar nas rádios e televisões desde que Eusébio faleceu, já todos tínhamos percebido. Escusava de fazer essa referência. Cada pessoa tem direito a viver o luto da forma que entende melhor. João Malheiro deve ficar com uma vontade irresistível de falar para os microfones.

E enquanto biógrafo, é estranho que não tenha conseguido falar em momento algum daquilo que fez de Eusébio o monstro que foi, ou seja, sobre o jogador de futebol. Para o biógrafo de Eusébio, Eusébio só existiu depois de Malheiro aparecer na sua vida. Para o biógrafo de Eusébio, não vale a pena falar dos golos, dos títulos. O importante foram as amizades, as viagens e as jantaradas. Que coisa tão triste.