terça-feira, 30 de setembro de 2014

A guerra dos fundos e o império contra-ataca

                                                                                                                                            
Shame on you, comentadores portugueses

No dia 14 de agosto, o Sporting anunciou a decisão de dar como anulado o contrato com a Doyen por Rojo. Foi o culminar de um processo que envolveu uma troca de acusações e ameaças entre clube e fundo, deixando a Doyen definitivamente de fora no negócio da venda do jogador argentino ao Manchester United.

As reações imediatas dos nossos comentadores foram as esperadas - assumiram praticamente todas as dores da Doyen, referindo que:

1. O Sporting não pode rasgar contratos sem consequências, chegando-se ao ponto de comparar esta situação com a de um cliente que chega a um banco e diz que rasga o contrato de empréstimo da casa;

2. Ao repudiar a Doyen e fundos semelhantes, o Sporting está a desperdiçar uma valiosa ferramenta que lhe permitiria tornar o seu plantel mais competitivo.

Em relação ao primeiro ponto, a comparação é infeliz. Um cliente pode chegar ao banco e dizer que o contrato fica sem efeito - desde que devolva o dinheiro que ainda está a dever e pague a penalização prevista no contrato. Se não pagar, fica sem a casa. Depois, porque num típico empréstimo para compra de casa, o banco limita-se a cobrar as prestações que estão contratualmente previstas, ou seja, não anda a exigir ao cliente que venda a casa ou que pague prestações mais elevadas do que o previsto. Se o cliente cumprir as suas obrigações não terá quaisquer problemas com o banco.

Acontece que o Sporting não era obrigado a vender Rojo. Tanto quanto se percebeu pela troca de comunicados, existiam cláusulas que obrigariam o Sporting a indemnizar a Doyen caso não vendesse Rojo ao fim de um determinado período, ou caso não aceitasse vender o jogador acima de uma determinada verba - mas no limite, vender ou não vender seria sempre uma opção que cabia ao Sporting tomar, tendo depois que viver com as consequências dessa decisão em função das cláusulas definidas contratualmente.

O Sporting explicou que deu como anulado o contrato porque a Doyen cometeu pressões indevidas para vender o jogador, algo que é proibido pela FIFA. Mas infelizmente, mais uma vez, foram pouquíssimos os comentadores que tentaram analisar o caso pela perspetiva do Sporting. É natural, pois trata-se de um hábito que a maior parte dos nossos experts enraizou há muito - desvalorizar qualquer iniciativa que o Sporting tome.

Bruno de Carvalho não se poupou a esforços para divulgar a posição do Sporting em relação a este caso e ao papel dos fundos em geral. Foi ouvido por órgãos de comunicação social de todo o mundo. Mas por cá, o que se continuava a ouvir era que Bruno de Carvalho, ao preferir "demonizar" os fundos, estava apenas a prejudicar os interesses do próprio clube - já que estaria a fechar a porta à "ajuda" dos fundos para tornar o plantel leonino mais competitivo.

Não estou a dizer que algumas das observações desses comentadores não tenham alguma razão de ser, mas foram poucos aqueles que se deram ao trabalho de tentar analisar aquilo que é realmente o cerne da questão. Felizmente que a imprensa internacional soube fazer a abordagem certa ao problema - nomeadamente colocando o enfoque na falta de transparência sobre a constituição dos fundos e os riscos que a indústria do futebol corre quando os clubes passam a ser reféns de entidades desconhecidas, que foram conquistando uma influência cada vez maior, e sem que se conheçam os nomes e os reais objetivos que se escondem atrás das fachadas criadas pelos Nélios Lucas da vida.

Cerca de 45 dias depois de o Sporting ter decidido anular o contrato por Rojo com a Doyen, a FIFA e a UEFA anunciaram a decisão de impedir a copropriedade de passes com jogadores. Não sou ingénuo ao ponto de pensar que foi o caso Rojo que forçou as entidades internacionais a tomar esta posição, mas é indesmentível que foi o Sporting que colocou este tema na atualidade internacional (bem mais do que por cá), acabando por ajudar a preparar o terreno para que a FIFA e UEFA concluíssem finalmente um processo de tomada de decisão que já se arrastava há sete anos.


O império contra-ataca

Ontem, Nélio Lucas deu uma entrevista à Bloomberg em reação à decisão da FIFA e da UEFA, procurando passar duas ideias fundamentais:

1. Acabar com os fundos é uma forma de proteger os clubes mais ricos;

2. A Doyen encontrará sempre uma forma de contornar as proibições que a FIFA e a UEFA imponham, através da criatividade dos seus advogados (!).

Em relação ao 1º ponto, há de facto uma questão fundamental de concorrência, mas não é essa. No caso do futebol português, não é pelos fundos que passaremos a conseguir competir com os tubarões europeus. Com ou sem fundos, não conseguiremos competir com eles. Eventualmente alguns atletas deixarão de vir para cá, é verdade, mas os clubes portugueses sempre tiveram bons jogadores mesmo sem a ajuda dos fundos.

Cada vez há mais jogadores de qualidade em todo o mundo. O número de ligas e clubes não anda a aumentar. Ou seja, continuarão a haver jogadores disponíveis para vir para Portugal. O Real Madrid, o Barcelona, o PSG, a Juventus, o Manchester City, o Manchester United, o Chelsea, o Arsenal e o Bayern não podem ter plantéis de 80 jogadores. Escolherão os melhores, e sobrará muita qualidade que se espalhará por outros clubes, em cascata, até chegarem a Portugal. E é também uma questão da prospeção dos clubes portugueses voltar a funcionar de forma independente dos interesses destes "parceiros".

A grande questão da concorrência é outra. A partir do momento em que um clube numa liga opta por trabalhar de forma muito aproximada com fundos, todos os seus rivais internos passam a ter um problema: ou ficam automaticamente numa posição de desvantagem, ou acabam por ter que seguir o mesmo caminho.

Quanto à questão da criatividade dos advogados, parece mais uma questão de bazófia de Nélio Lucas. Essas coisas não se anunciam, praticam-se. E colocar a FIFA e a UEFA de sobreaviso não me parece a estratégia mais prudente. Na Premier League conseguiu-se um sistema que aparentemente tem funcionado. Será que a UEFA não conseguirá implementar algo semelhante?