terça-feira, 24 de maio de 2016

Exercício hipotético

Vamos imaginar uma situação hipotética: existem dois clubes (chamemos-lhes A e B), de países diferentes, mas que têm um relacionamento altamente privilegiado - seja pelo relacionamento pessoal entre elementos das duas direções, seja por terem ambos uma ligação muito próxima com um poderoso agente e intermediário do mundo do futebol, seja pelo extenso histórico de transferências de jogadores que realizaram entre si ao longo da última década.

Vamos também fazer de conta que a situação financeira desses clubes não é propriamente famosa. A competitividade e o desejo de interromperem as hegemonias existentes nos respetivos campeonatos, levou-os a arriscarem tudo o que podem e não podem, investindo no limite das suas possibilidades e aumentando sistematicamente o nível de endividamento bancário e obrigacionista.

Para além da pressão da banca, cada vez menos tolerante para gastos em excesso desses clubes - apesar das consecutivas promessas feitas em contrário -, o Fair Play Financeiro é também um problema que tem que ser  ultrapassado.

Felizmente, alguém teve uma ideia brilhante.

O clube A, menos pressionado que o amigo clube B, compra ao clube B um jogador por €25M.

Por sua vez, o clube B compra ao clube A um jogador por €20M.

Há quem diga que os jogadores não valem nem de perto nem de longe esses valores, mas isso é pouco importante. Os clubes A e B conseguirão encontrar quem convença o público de que os montantes das transferências são justos. Os argumentos poderão variar, mas em último caso diz-se que são jogadores de enormíssimo potencial.

Continuando, o que se passará será o seguinte:

1. O clube A e o clube B fazem encontro de contas. O clube A pagará apenas €5M ao clube B, numa data que seja conveniente para ambos.

2. O clube A e o clube B podem registar de imediato o lucro das respetivas vendas. Vamos supor que o clube A declara uma mais-valia de €15M, e o clube B declara uma mais-valia de €21M. Um negócio da China, considerando que os jogadores valiam bem menos que isso. 

3. O clube A e o clube B também têm de registar os custos das aquisições. Mas há uma diferença fundamental: a compra de jogadores é considerada como um investimento, o que significa que o valor "gasto" nas aquisições é transformado num ativo do clube, que será amortizado (ou seja, o custo será reconhecido nas contas) de forma parcial e uniforme ao longo do contrato do jogador.

Ambos os jogadores assinaram por 5 anos. Isto significa que o clube A irá ter um custo de apenas €5M por ano à conta desse jogador (que lhe custou €25M), enquanto o clube B irá registar um custo de €4M por ano (pois o jogador custou €20M).

4. Ou seja, nesta permuta de jogadores, o clube A fica com:
  • Um ativo superior (aumenta €25M pela aquisição do jogador ao clube B e diminui pelo valor ainda não amortizado do jogador vendido ao clube B)
  • Um proveito de €15M pela mais-valia alcançada na venda que fez ao clube B
  • Registará no final do ano um custo de €5M pela amortização da parcela correspondente ao 1º ano de contrato do jogador

5. Por seu lado, o clube B fica com:
  • Um ativo superior (aumenta em €20M pela aquisição do jogador ao clube A e diminui pelo valor ainda não amortizado do jogador vendido ao clube A)
  • Um proveito de €21M pela mais-valia alcançada na venda que fez ao clube A
  • Registará no final do ano um custo de €4M pela amortização da parcela correspondente ao 1º ano de contrato do jogador


Agora imaginem que, para além do clube A e do clube B, existem outros clubes que participam numa espécie de rede de transferências inflacionadas de jogadores. A curto prazo todos saem a ganhar: o risco de darem prejuízo no imediato passa a ser quase nulo. Os ativos (e também os passivos) aumentam, e isso faz com que o peso do endividamento bancário, quando comparado com as receitas e os ativos, pareça inferior. Assim os dirigentes desses clubes já terão mais facilidade em dizer: "sim, eu tenho uma dívida bancária grande, mas é perfeitamente comportável em função dos meus ativos e das minhas receitas". 

Claro que, repetindo-se a brincadeira demasiadas vezes, os valores das aquisições por amortizar começam a acumular-se, formando uma espécie de bolha pouco recomendável... o que obrigará a vender ainda mais inflacionado nos anos seguintes. E, claro, também obrigará a fazer, pelo meio, vendas reais - daquelas que efetivamente movimentam dinheiro -, para taparem o buraco que entretanto se vai aprofundando. Há também outro risco: as pessoas poderão acabar por estranhar a existência de tantas vendas sem aparente necessidade, pois olham para as contas e estas até parecem ser bastante saudáveis...

Recordo que isto é tudo hipotético. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.