A oportunidade da entrevista
Não podemos censurar o Record por ter realizado esta entrevista ao jogador inglês. O interesse jornalístico é inegável, pois temos um jovem da formação do Sporting, um dos mais admirados pelos adeptos, que decidiu unilateralmente sair do clube após mais de uma década de ligação, usando um direito que lhe assistia.
Nesse sentido, também não é de espantar que o jornal opte por destacar as palavras de descontentamento do jogador face ao tratamento a que supostamente a direção o terá submetido.
No entanto, podemos questionar a política que o Record segue para realizar estas entrevistas de jogadores com vontades desalinhadas com os interesses do clube. Por exemplo, Oblak desapareceu para assinar pelo Atlético à revelia do clube, mas o Record já não foi tão expedito a garantir uma entrevista com o jogador. Garay saiu por tuta e meia, deixando mensagens enigmáticas aos adeptos benfiquistas (dizendo que não podia esperar mais), e continuamos à espera que os jornalistas do Record falem com ele. Rolando recusa-se a jogar no Porto, os seus empresários andam a ser ameaçados e insultados, mas parece que ninguém tem interesse em ouvir o lado da história do jogador.
O que parece óbvio é que o Record tem, em demasiadas ocasiões, a tendência para dourar a pílula para uns clubes e para plantar cenários catastrofistas para outros, como se pode exemplificar por estas duas capas publicadas no espaço de 9 dias:
O Record podia ter optado por dar ênfase a outras palavras que Slimani disse na mesma entrevista, como "No Sporting não me falta nada. Voltei aos treinos e trabalho no duro para poder estar em condições quando recomeçar a competição. Com o resto não me preocupo." ou "Espera-me uma temporada preenchida aqui no meu clube". Certamente seriam palavras que, colocadas na primeira página, dariam uma perspetiva bem mais semelhante à capa sobre Enzo.
Ficarei também a aguardar a entrevista que o Record fará a Bernardo Silva, que também tem um interesse jornalístico elevado. Será interessante ouvir a perspetiva de um jogador da formação benfiquista inegavelmente talentoso sobre os motivos que o levaram a ter tão poucas oportunidades para se afirmar no seu clube do coração.
As palavras de Dier
Na entrevista é possível perceber três questões que, segundo Dier, terão contribuído para a sua saída do Sporting: o processo de renovação do contrato, a relação com a direção, e a fraca utilização na época passada.
1º A renovação
Segundo Dier, não foi o salário o fator impeditivo para a renovação do contrato. O problema foi a cláusula de €45M que o Sporting queria impôr. Compreendo que o jogador não quisesse abdicar de uma cláusula acessível a qualquer clube inglês para uma que muito dificilmente seria batida, sem que tivesse um salário correspondente aos tais €45M (que certamente o Sporting, na situação em que está, não poderia pagar).
O facto de esse processo apenas ter começado há poucos meses não me parece relevante. Para todos os efeitos ainda existiam duas épocas de contrato, e a melhor altura para tratar este tipo de temas é precisamente o defeso.
Perante este impasse, seria realmente possível uma aproximação das duas partes? Para isso era preciso saber quanto queria Dier receber e até onde estaria disposto a aumentar a cláusula de rescisão. Por outro lado, até onde estaria disponível a direção do Sporting para baixar as pretensões da cláusula, sem comprometer a política de gestão contratual que tem seguido?
Não basta dizermos que casos excecionais exigem medidas excecionais, e que Dier, pelo seu historial no clube e potencial, merecia um tratamento diferente por parte da direção. Tratamentos privilegiados são uma potencial fonte de problemas no balneário (e eventualmente até com os credores), e é preciso medir as consequências que daí poderão advir.
2º A fraca utilização na época passada
Dier é claro ao dizer que a sua escassa utilização se deveu apenas a opções técnicas de Leonardo Jardim. Referiu a lesão na pré-temporada, que o deixou em desvantagem em relação a Maurício. Compreendeu e aceitou a decisão do treinador em considerá-lo como a 3ª opção para central.
Diz também que o melhor treinador que alguma vez teve foi Jesualdo Ferreira. Diz que aprendeu com ele mais em alguns meses do que com os outros em cinco anos. Não admira: Jesualdo apostou incondicionalmente em Dier apesar de, curiosamente, o ter tentado adaptar a trinco - Dier voltou a afirmar na entrevista que prefere jogar a central.
3º A relação com a direção
Dier diz que foi muito maltratado pela direção de Bruno de Carvalho desde que esta tomou posse. Acho estranho: com Bruno de Carvalho (e Jesualdo), Dier continuou a jogar com regularidade. Nunca foi colocado a treinar à parte e nunca deixaram de lhe pagar o salário. Então, de que maus tratamentos estamos a falar?
Tentando colocar-me nos pés do jogador, parece-me que esta insatisfação estará muito ligada às expetativas com que Dier ficou na altura das novelas de Bruma e Ilori.
Dier foi o único dos três que não causou problemas e que ficou no plantel. Esperava certamente continuar a titular, o que seria excelente do ponto de vista do seu desenvolvimento como jogador. Não acredito que tenha ficado chateado por o Sporting não lhe ter proposto uma renovação de contrato na altura - ainda tinha 3 anos de contrato pela frente, e a tal cláusula de €5M era uma garantia muito confortável para o seu futuro a médio prazo.
No entanto, os planos do jogador saíram furados quando apareceram Maurício, vindo por 300 mil euros da 2ª divisão brasileira, e William, regressado de um empréstimo em que pouco deu nas vistas, que agarraram a titularidade em duas posições em que Dier previsivelmente seria a 1ª opção.
Dier esperava ser titular e deve ter ficado desgostoso por ninguém na direção ter recompensado a sua "lealdade" no verão quente de 2013, influenciando Leonardo Jardim de forma a que o inglês tivesse mais oportunidades para jogar. Alguém se admira que o pai (e empresário) do jogador tivesse contactado Bruno de Carvalho de forma a que o presidente procurasse junto de Jardim facilitar o acesso de Dier ao onze? Eu não.
E partindo deste meu pressuposto, faria mais sentido que Dier guardasse as queixinhas para si. O Sporting investiu no seu desenvolvimento ao longo de 12 anos, ajudou-o decisivamente a desenvolver o seu potencial, deu-lhe oportunidades para jogar na equipa principal que poucos clubes lhe dariam, e como consequência de tudo isso vai agora jogar para um dos principais clubes ingleses, com um salário certamente muito acima daquilo que o Sporting lhe poderá pagar.
Aliás, dizer que o Sporting não quis que ele continuasse por não ter igualado as condições do Tottenham é de uma enorme desonestidade, pois os meios financeiros de ambos os clubes não são comparáveis. Mesmo que por absurdo o Sporting igualasse a proposta, o que impediria o Tottenham de oferecer mais umas centenas de milhar de euros no dia seguinte?
Dier saiu porque viu que não tinha a titularidade garantida no Sporting. Suplente por suplente, vai para onde lhe pagam mais. Muito mais. Fim de história.