sexta-feira, 24 de abril de 2015

Apocalipses seletivos

Uma das facetas do jornalismo desportivo português que mais me irrita é a hipocrisia com que alguns jornalistas encaram as movimentações de bastidores levadas a cabo por certos dirigentes do nosso futebol. Não vou referir nomes de dirigentes ou de clubes - não é neles que quero centrar esta crítica em particular -, mas durante décadas todos nos apercebemos dos proveitos que um certo emblema retirou de toda uma estrutura que montou e que abrangia todas as áreas de poder do futebol português. Estrutura essa que, todos nos apercebemos agora, está em vias de desmantelamento e substituída por uma outra mais adaptada aos tempos modernos.

Desde que comecei a acompanhar o futebol nacional, as suspeições sempre foram mais que muitas: as panelinhas feitas para colocar dirigentes nos lugares de maior influência (com o Conselho de Arbitragem à cabeça), o clima de intimidação instalado, a impunidade com que certos atores se movimentavam, arbitragens escandalosas que ainda não tinham um mundo artilhado de tecnologia para as avaliar devidamente, jogadores que tomavam a amarelinha para aumentar o rendimento físico, outros que eram apanhados no controlo com substâncias proibidas mas que arranjavam um colega menos influente na equipa para arcar com as culpas e a inevitável suspensão, entre tantos e tantos outros exemplos.

Hoje em dia o mundo do futebol está mais sofisticado e cauteloso, mas nem por isso as suspeições abrandaram. Basta ver as reações que se seguiram à recuperação de Jackson para a 1ª mão com o Bayern.

Todas estas suspeições esbarravam (e continuam a esbarrar) numa comunicação social com pouca capacidade ou interesse para investigar o lado podre do futebol. De um lado tínhamos (e ainda temos) jornalistas que, por acreditarem que alimentar o escândalo é matar o desporto, por incapacidade de provar irregularidades, ou por temerem represálias, evitavam (e continuam a evitar) remexer em assuntos demasiado delicados. Do outro estavam (e ainda estão) jornalistas que, por estarem totalmente alinhados com a fação acusada, só pegavam (e pegam) nos temas polémicos com o único objetivo de os desvalorizar. Quantas vezes leram e ouviram jornalistas a declarar convictamente que ganha quase sempre a melhor equipa dentro do relvado e que o resto é conversa de mau perdedor?

O verdadeiro teste à coerência destes jornalistas acontece quando a agulha vira e os clubes que habitualmente estão no centro dos interesses instalados do futebol nacional se vêem repentinamente no outro lado da barricada - nomeadamente quando têm que defrontar os tubarões europeus nas competições da UEFA.

Lembro-me por exemplo, na sequência do Schalke - Sporting, ouvir Carlos Daniel dizer com todas as letras que o Sporting foi roubado, fazendo também uma ligação à arbitragem que prejudicou o Benfica em Leverkusen. Será que o comentador em questão faria semelhante juízo de valor num caso em que o Sporting fosse prejudicado nas competições nacionais? Ocasiões para isso não lhe faltaram e sinceramente não me lembro de alguma vez o ter feito quando o Sporting foi o clube prejudicado.

Outro bom exemplo, mais recente, é o artigo de opinião escrito por José Manuel Ribeiro, diretor de O Jogo, que fez o lançamento da 2ª mão da eliminatória que opôs o Porto ao Bayern:


O Porto encontrou mesmo o apocalipse, mas não pelos motivos que José Manuel Ribeiro "previa". Só por azar, os lesionados ficaram todos de fora e o árbitro não teve qualquer influência no resultado. Mas para a história fica que o jornalista, numa única frase, conseguiu lançar suspeições sobre a ética dos alemães (e de Guardiola em particular) e sobre a boa-fé da equipa de arbitragem. Não coloco em causa que não tivesse motivos para o fazer (a questão das infiltrações foi introduzida pelo treinador espanhol), mas não me recordo que o jornalista em causa tenha tomado uma posição tão clara sobre polémicas idênticas que tenham sido alvo de discussão no futebol português. E sabemos bem que não lhe faltaram oportunidades para isso.