segunda-feira, 4 de maio de 2015

Também há fogo de supressão no futebol português


Em qualquer bom filme de guerra há sempre aquele momento em que os heróis se preparam para tomar uma posição chave ocupada pelo inimigo e pela qual passa o sucesso de toda uma operação. O líder do pelotão olha para os seus homens, nomeia aqueles que o acompanharão no assalto e diz aos restantes para, ao seu sinal, os apoiarem com o famoso covering fire (fogo de supressão em português), de forma a aumentar as hipóteses de se conseguirem aproximar do objetivo sem serem um alvo fácil para os soldados que lá estão entricheirados. Basicamente, o fogo de supressão serve para manter o inimigo de cabeça baixa, de forma a que não consigam observar devidamente o seu movimento nem dificultar a oposição à sua progressão.

O fogo de supressão é uma tática que ultimamente tem sido também utilizada com bastante frequência no futebol português. Vou deixar aqui dois exemplos que, curiosamente (ou talvez não), são originários da mesma fonte.


A polémica Belenenses / Rui Pedro Soares / Benfica

Ao longo do último mês foi tema de amplo debate a inqualificável promiscuidade que existe entre Belenenses e Benfica, promovida pelos dirigentes benfiquistas e abençoada pelo presidente Rui Pedro Soares. Há duas semanas, em pleno jogo entre as duas equipas, alguns sócios e adeptos do clube do Restelo manifestaram o seu desagrado pelos acontecimentos com esta faixa:


Um momento humilhante a que Rui Pedro Soares, afamado boy que agora se presta a todo o tipo de fretes no futebol - já tinha feito carreira disso na política -, foi submetido na sua própria casa. Perante este ataque a um precioso aliado da máquina benfiquista, bastaram apenas dois ou três dias para que um conhecido e influente (ou influenciável?) jornalista saltasse em sua proteção no seu espaço semanal:

(obrigado, @captomente)

Ou Rui Pedro Soares ou o caos, é o que podemos concluir deste texto de José Manuel Delgado. Não tenho informação suficiente para perceber até que ponto a gestão de Rui Pedro Soares saneou as finanças da SAD, mas parece-me definitivamente abusivo o seguinte excerto:
"A nova gestão trouxe ventos de prosperidade, que passaram (...) por um novo fôlego competitivo. Foi assim que o Belenenses deixou de viver o pesadelo de descer ao terceiro escalão e passou a olhar, com esperança, para a subida à I Liga". 

Escrevo abusivo porque, sendo verdade que o Belenenses regressou em 2012/13 à I Liga já durante a presidência de Rui Pedro Soares - com 23 pontos de avanço sobre o segundo classificado -, a realidade é que o atual presidente da SAD passou a ser o acionista maioritário a 13 de dezembro de 2012, altura em que a classificação estava assim ordenada:


Rui Pedro Soares só assumiu a presidência em janeiro de 2013, mas a verdade é que a subida à I Liga já estava muito bem encaminhada quando comprou ao Belenenses as ações que lhe deram o controlo da SAD. 10 pontos de avanço sobre o 3º classificado é uma folga assinalável ao fim de 17 jornadas. Portanto, em relação aos medos de descida ao terceiro escalão estamos conversados - a não ser que fosse por incumprimento de compromissos de ordem financeira, problema que desconheço se seria assim tão urgente de resolver. De qualquer forma, o "novo fôlego competitivo" que José Manuel Delgado apregoa é uma enorme treta.

O clube regressou à I Liga, e em 2013/14 o Belenenses assegurou a manutenção à justa, ficando no antepenúltimo lugar. Esta época está de facto a fazer uma competição muito acima das expetativas. A questão é: será que a responsabilidade deste regresso aos lugares cimeiros se deve apenas a boa e imaculada gestão? Será que o facto de se submeter ao Benfica, cedendo...
  • parcelas significativas de direitos económicos de jogadores - que compromete a obtenção de mais-valias futuras;
  • direitos de preferência de jogadores;
  • abstendo-se de apresentar a equipa mais forte nos jogos que opõem os dois clubes; 
... a troco de dinheiro fresco e de jogadores emprestados, não será uma forma pouco lícita de recuperar a hipótese de jogar na UEFA? O que seria do nosso futebol se os restantes clubes da mesma dimensão começassem a fazer o mesmo? Que tipo de competição passaríamos a ter?

Ao escrever este artigo de opinião, o sub-diretor do jornal A Bola está basicamente a tentar passar uma esponja por relacionamentos eticamente duvidosos, aprovando entusiasticamente o rumo que Rui Pedro Soares escolheu para a SAD. Podemos concluir que para este jornalista os fins justificam os meios utilizados, e os sócios e adeptos do Belenenses não passam de uns ingratos que perderam a noção do que é "realmente" importante.


A polémica nomeação de João Capela para o Gil Vicente - Benfica


Todos nos divertimos imenso com mais uma troca de mimos entre Lopetegui e Jesus, desta vez acerca da nomeação de João Capela para o jogo de Barcelos. Desde então foi possível assistir a uma série de declarações de gente que, direta ou indiretamente envolvida, decidiu dar a sua opinião sobre o assunto. 

Um desses intervenientes foi o treinador do Gil Vicente, José Mota, que criticou de forma categórica a escolha do árbitro que o Conselho de Arbitragem fez para esta partida. E com toda a razão, já que foi precisamente João Capela (e o seu assistente) que cometeu um erro grosseiro que esteve diretamente na origem do único golo que derrotou o Gil Vicente.


Quem não gostou da colherada metida por José Mota foi o decano jornalista e subdiretor do jornal (surpresa!!!) A Bola, Fernando Guerra, que no sábado (dia do jogo) escreveu o editorial que podem ver à esquerda.

Fernando Guerra começa o texto considerando as trocas de palavras entre Jorge Jesus e Lopetegui como "bate boca normal", mas atira-se de unhas e dentes a Mota por este estar a dar a sua opinião sobre um assunto em que, só por acaso, a sua equipa participa e é uma parte diretamente interessada.

Começa por atacar o caráter de José Mota recordando as deselegantes palavras de Paulo Fonseca na 1ª jornada da época passada sobre o agora treinador do Gil Vicente (deselegantes porque um treinador de um grande deve ter mais tolerância com declarações de técnicos que lideram equipas com meios infinitamente inferiores). 

"Agora, com uma novidade, porém: reclama com um dia de antecedência e também com algum descuido.", escreve Guerra. À deselegância de Paulo Fonseca (que mais tarde se arrependeu das palavras que disse), conseguiu acrescentar uma dose adicional de deselegância que um jornalista se deveria abster de cometer, a não ser em situações comprovadamente graves.

Fernando Guerra prossegue a defesa da nomeação de João Capela referindo que existem outros árbitros que também já apitaram 3 jogos do Benfica esta época (mas nenhum árbitro apitou 4 de nenhum dos grandes como o Capela após a partida de sábado, não é, ó Fernando?), e acusa José Mota, no editorial - considera-se que um editorial reflete a opinião da publicação em causa, ou seja, neste caso do jornal A Bola - de "ajudar a inventar um caso" que "talvez lhe dê jeito".

Para suportar o ataque ao treinador do Gil Vicente, termina o artigo referindo que foi precisamente João Capela o árbitro da penúltima vitória da equipa de Barcelos - como se isso por acaso tornasse a nomeação mais aceitável. Parecem-me dois factos totalmente desconectados, pois o facto de o Gil Vicente ter ganho ao Paços nessa partida com João Capela a arbitrar não implica necessariamente que José Mota tenha que passar a ter boa opinião do árbitro em questão.

Só por curiosidade, pesquisei o que escreveu o jornal A Bola sobre a arbitragem de João Capela nessa partida entre Gil Vicente e Paços de Ferreira:


Boa arbitragem, segundo A Bola, mas por acaso o Gil Vicente até reclamou de um penálti não assinalado a seu favor. Com ou sem razão? Não há forma de saber, pois o resumo disponível não o mostra. Mas a verdade é que José Mota tem direito a não gostar de João Capela - e mesmo dando de barato que não havia motivos de queixa no tal penálti contra o Paços de Ferreira, o erro cometido no Estádio da Luz era razão mais que suficiente para temer uma nova arbitragem com influência no resultado.


Fogo de supressão

É fácil perceber o objetivo deste tipo de artigos que os jornalistas com mais nome do jornal A Bola estão a fazer. Ao atacarem os sócios do Belenenses e o treinador de uma das equipas em pior situação da I Liga, estão a mandar um sinal que estão prontos a atacar o caráter de qualquer pessoa que venha a público dar uma opinião contrária à narrativa que a publicação em causa se tem esforçado tanto por estabelecer.

A nomeação de João Capela é um escândalo. Não há outra forma de colocar a questão. E José Mota tem TODO o direito - mais do que qualquer outra pessoa - de contestar esta escolha. Se Fernando Guerra não gosta é um problema dele, mas enquanto jornalista não há qualquer justificação para tão duras palavras quando se andam a passar coisas bem mais graves nos estádios portugueses - que por acaso não têm merecido o mesmo nível de indignação do subdiretor do jornal A Bola.

Em relação ao caso do Belenenses, até compreendo que José Manuel Delgado se reveja nas ações de Rui Pedro Soares - ao que se diz por aí, também o jornal A Bola teve que pedir financiamento ao Benfica para continuar a operar. Seria uma hipocrisia estarem a criticar outros por recorrerem à mesma ajuda. Resta saber o que é que A Bola entregou em contrapartida, visto que na Travessa da Queimada não existem percentagens de passe nem direitos de preferência para ceder...