Ao longo da história da humanidade tem havido, muito esporadicamente, o relato de acontecimentos que desafiam todas as explicações racionais que os nossos limitados cérebros conseguem formular. Tais acontecimentos, por serem tão extraordinários e raros, acabam por se tornar em marcos chave civilizacionais, à volta dos quais se constroem religiões ou mitos que intrigam gerações.
Pode-se chamar esses acontecimentos de milagres (no caso de homens e mulheres de fé) ou de lendas (no caso dos mais céticos), mas uma coisa é certa: a esmagadora maioria dos seres humanos que alguma vez respiraram o ar desta nossa atmosfera nunca teve a sorte de presenciar um destes eventos singulares.
Felizes de nós, que acompanhamos com atenção esse fenómeno que é o futebol português, por termos tido a oportunidade de testemunhar não um!, mas dois! milagres no espaço de poucos dias.
O 1º milagre
Vieira, que já tinha conseguido o milagre de vender Rodrigo e André Gomes a um misterioso fundo em janeiro passado por um valor inacreditável, alcançou aquilo que todos julgariam ser impossível: o presidente benfiquista suplantou-se a si próprio, ao vender três jovens jogadores com utilizações pouco significativas na equipa principal pela astronómica verba de €45M.
Na minha inocência, e atendendo ao facto de que já se tinha percebido que Jesus dificilmente lhes daria minutos significativos no onze, eu diria que se os três fossem vendidos por €10M já seria um bom negócio para o Benfica:
- €5M por Bernardo pelo potencial, pois não deixa de ser um jogador de 20 anos que tem apenas 1 jogo na I Liga - num jogo a feijões contra o Porto na última jornada da época passada;
- €3M por Cavaleiro, que já tem um ou outro jogo a doer no currículo, apesar de nunca ter impressionado;
- €2M por Cancelo só para arredondar as contas, porque nunca mostrou nada que se visse até agora.
Mas não, parece que Vieira vendeu por €45M os três jogadores à Meriton, o fundo de Peter Lim. O mesmo Peter Lim que, nas últimas semanas, tem andado a tentar negociar o preço de Enzo Peréz, de forma a não ter que desembolsar a cláusula de rescisão. Ora relata-se que o bilionário oferece €25M pelo argentino, ora €27M, ou até €28M, mas não há forma de chegar aos €30M da cláusula que lhe garantem a contratação o jogador.
Curioso, portanto, que o mesmo homem que anda a regatear um par de milhões de euros pelo jogador mais influente do campeão nacional decida, num impulso gastador, sacar do livro de cheques e da Bic Cristal que tem no bolso da camisa para entregar a Vieira €45M por três promessas encarnadas que nada lhe poderão oferecer no curto e médio prazo.
Eu, que não sou um homem de fé, até acredito que exista um fundo de verdade nesta história: os direitos económicos dos três jogadores já não devem pertencer ao Benfica, pois esse rumor nem sequer é novo. Será possível que tenham sido integrados (mas não anunciados) na venda de Rodrigo e André Gomes? €45M pelos 5 jogadores, na altura em que essa venda foi concretizada, já seria um negócio com interesse para o fundo de Lim (e mesmo assim era dinheiro a mais, na minha opinião).
É um caso que necessita claramente de esclarecimentos por parte dos responsáveis benfiquistas, apesar de me parecer que Vieira será homem para apregoar um monte de novos milagres na entrevista que dará na próxima quinta-feira ao canal do clube.
O 2º milagre
Após semanas de impasse, finalmente concretizou-se o negócio entre o Porto e o Manchester City por Mangala. Mas, para surpresa geral, o Porto não anunciou a venda por €40M, dos quais teria direito a 56,6% - que corresponderiam a cerca de €22M. Segundo o comunicado à CMVM, o Porto garantiu €30,5M pelos tais 56,6% do passe.
É de tal forma mágica esta venda, que fazendo as contas se chega à conclusão que os 100% do passe ficaram avaliados em quase €54M, ou seja, €4M acima da cláusula de rescisão de um jogador que acumulou erros e trapalhadas ao longo da última época.
Tivesse sido Vieira a desencantar este negócio, e Pinto da Costa não hesitaria em falar em milhões da treta.
Entretanto, surgiu na blogosfera uma outra teoria: que Pinto da Costa encostou a Doyen (detentora de 33,3% do passe) à parede e ameaçou não vender o francês, impedindo que o fundo conseguisse ter o retorno do investimento de €2,6M feito no jogador há três anos. Segundo fontes do blogue Tribunal do Dragão, o Manchester City pagou os pré-anunciados €40M, mas a Doyen cedeu ao Porto €8M dos €13,2M a que teria direito. Mesmo assim, segundo o blogue, a Doyen pode dar-se por satisfeita porque conseguiu receber o dobro daquilo que investiu na altura da contratação de Mangala ao Standard Liege.
Já disse que não sou um homem religioso, mas... por amor de Deus!, alguém acredita que um fundo cede a este tipo de pressões de um clube de futebol? Ainda por cima, de um clube que está muito mais pressionado para vender do que o próprio fundo?
Não nos esqueçamos que o Porto, para além de se preparar para reportar contas negativas (de um prejuízo de €20M, na melhor das hipóteses, não se safam) referentes a 2013/14, tem empréstimos de €30M para liquidar a curto prazo - empréstimos esses que se não fossem pagos implicariam a perda dos passes de Jackson e Mangala, que estavam dados como colateral. A Doyen poderia não recuperar o investimento já, mas o que aconteceria ao Porto se não vendesse Mangala?
Seria muito mais catastrófico para o Porto não vender Mangala AGORA do que para a Doyen.
Eu até admito que a Doyen possa ter cedido direitos no valor de €8M ao Porto, mas não foi de certeza o idílico e fantástico negócio que querem fazer passar, por dois motivos essenciais:
- O Porto tem uma posição negocial muito mais frágil do que a Doyen;
- No mundo real não existem almoços grátis.
Bruno de Carvalho pode aprender com este exemplo. Temos 25% do passe de Rojo, a Doyen tem 75% por um investimento de cerca de €3M. Se alguém oferecer €20M por Rojo, podemos fazer a mesma chantagem com a Doyen, dizendo que eles só têm direito a €6M (para duplicarem o investimento) enquanto que nós ficamos com os restantes €14M (em vez dos €5M a que teríamos direito). Caso contrário Rojo não sai! -- como é evidente isto não faz qualquer sentido.
É melhor que os portistas fiquem a pensar no que a sua direção ofereceu à Doyen como contrapartida, caso a cedência de direitos da Doyen ao Porto seja mesmo verdade.