quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Pessoas de carne e osso


O objetivo de colocar aqui este vídeo não é utilizá-lo como arma de arremesso ao Benfica na sequência do corte de relações anunciado pelo Sporting (assunto que abordarei mais tarde), mas sim porque me parece um testemunho fundamental que pode contribuir para que muita gente ponha a mão na consciência em relação às atitudes que foram tomadas ao longo destes últimos dias.

Muito mais importante do que se tratar de um sportinguista ou benfiquista, Rui Mendes era pai de dois filhos, marido e filho. Uma tarde foi assistir a uma partida de futebol e nunca mais regressou para junto da sua família. Muito pior do que qualquer ferida causada ao clube e aos seus adeptos (na altura foi algo que me chocou profundamente), foi o facto de esse trágico incidente ter privado duas crianças, uma esposa e os seus pais do seu pai, marido e filho, de uma forma brutal e permanente.

Provavelmente alguns dos idiotas que exibiram aquela tarja no jogo de futsal ainda usavam fraldas em 1996. Duvido que tenham alguma vez parado para pensar nas reais implicações dessa fatídica tarde para as pessoas de carne e osso que viram as suas vidas transformadas para sempre. No entanto, isso não serve de forma alguma como atenuante para aqueles atos, que qualquer pessoa de bom senso repudiaria de imediato.

Infelizmente podemos dizer o mesmo daqueles que tiveram a ideia de fazer as faixas com "Sigam o King" e que faziam referência aos elementos dos NN que morreram há uns anos. Não passa de uma provocação barata que não só não defende a honra do seu clube, como também os coloca ao mesmo nível daqueles que criticaram no dia anterior.

Tudo isto não passa de uma batalha entre gente pequena e irresponsável que se aproveita do nome de duas instituições centenárias, de uma rivalidade histórica intensa e da paixão dos seus adeptos para alimentar ódios sem sentido - e que apenas contribui para encolher a dimensão desses clubes no sentido da sua própria pequenez.

No entanto, das tarjas e insultos ao episódio do very-light - ou numa escala mais pequena, aos petardos lançados no final do jogo de domingo para uma bancada repleta de adeptos - vai uma grande distância. Mas é aterrador pensar que no meio de gente que gosta de provocar os outros poderão haver um ou dois indivíduos que, numa conjugação infeliz de oportunidade, meios e falta de auto-controlo, voltem a provocar uma morte de uma pessoa num estádio de futebol ou nas suas imediações.

A verdade é que tudo isto acaba por ser também um reflexo do péssimo dirigismo desportivo que temos tido ao longo das últimas décadas. Não quero estar a particularizar - porque não é de todo o objetivo deste post - mas aqueles que deveriam funcionar como exemplo para os adeptos são geralmente os primeiros a manipular os sentimentos das massas para seu exclusivo proveito. Esse tipo de dirigismo fez escola muito por culpa do péssimo escrutínio que nós, sócios e adeptos - e também a comunicação social -, fazemos do seu desempenho. Avaliamos quase exclusivamente pelos resultados e não pelos valores. Aplaudimos o oportunismo e desdenhamos a honestidade. Premiamos o cinismo e penalizamos a frontalidade.

Claro que há espaço para rivalidades no relacionamento entre clubes. Sem picardias, sem o sal e pimenta que décadas de disputa acesa nos habituaram, o futebol não teria definitivamente o mesmo interesse. Mas existem linhas de civilidade que nunca podem ser ultrapassadas e que deveriam ser condenadas de imediato por aqueles que rodeiam os transgressores. 

Ninguém pode exigir o quer que seja dos outros sem que antes se preocupe em ser exigente consigo próprio. Isso aplica-se acima de tudo aos dirigentes que lideram os nossos clubes, mas também a cada um de nós. Há graus de culpa diferentes, mas não há inocentes. Todos temos um papel a cumprir se queremos que estes episódios terminem definitivamente.