segunda-feira, 15 de junho de 2015

A suprema hipocrisia do jornalismo desportivo português

Nas últimas semanas, desde que estalou a crise na FIFA, têm sido muitos os jornalistas desportivos que têm, através dos seus espaços de opinião ou via redes sociais, rejubilado por finalmente a justiça ter atuado sobre uma organização sobre a qual há muito recaíam graves suspeições de corrupção.

É normal que o façam. As críticas da comunicação social portuguesa sobre a forma como opera a FIFA já vinham de trás, até feitas de forma bastante explícita considerando os limites devidos a quem ainda não foi condenado ou, neste caso, nem sequer formalmente acusado.

O que já não é tão normal é que esses mesmos jornalistas façam uma espécie de voto de silêncio perante outras situações igualmente óbvias que há anos se passam em Portugal. Aliás, nem sequer há um voto de silêncio: a maior parte até fala sobre o assunto, mas apenas para negar que se passe alguma coisa menos legítima no futebol português.

Há árbitros que erram sistematicamente de forma grosseira a favor dos mesmos? Negação. Há árbitros que praticam critérios disciplinares diferentes em função da cor das camisolas? Negação. Há um Conselho de Arbitragem que, contra o mais elementar bom senso, insiste em nomear árbitros com um historial duvidoso com uma determinada equipa para jogos decisivos em que essa mesma equipa participa? Pede-se um pouco mais de bom senso, mas depois se existem erros decisivos exclui-se a possibilidade de haver má-fé. Há uma luta de poder cíclica entre os mesmos de sempre para ocupar determinados lugares de poder do edifício federativo? Admitem-no, mas quem leia ou ouça os jornalistas e comentadores fica a pensar que querem o poder só pelo poder, e não para usufruírem dele.

A maior parte dos jornalistas prefere ignorar estas situações, ou então atribuir as razões de tais coincidências a simples incompetência, escudando-se na argumentação mais que gasta de que os 3 grandes são sempre os mais beneficiados e que no final as contas equilibram-se. E ai de quem ousar insinuar que existem decisões deliberadas de agentes desportivos que pervertem a verdade desportiva - esses são imediatamente rotulados de fanáticos que apenas lançam suspeições porque querem ver a sua equipa ganhar, custe o que custar. 

Até acredito que alguns desses jornalistas assumam esta posição por se sentirem no dever de "proteger" a indústria do futebol - que é aquilo que lhes põe o pão na mesa -, mas muitos deles perdem a coerência quando se sentem à vontade para lançar suspeições quando os clubes portugueses são prejudicados nas competições europeias. Um exemplo muito concreto: a maior parte dos jornalistas tentou branquear a arbitragem de João Capela no tristemente célebre Benfica 2 - Sporting 0, mas muitos deles não tiveram problemas em dizer com todas as letras que o Sporting foi R-O-U-B-A-D-O em Gelsenkirchen pela equipa de arbitragem russa. Ou seja, admitem que existe corrupção ou tráfico de influências lá fora, mas neste nosso pequeno retângulo querem convencer-nos que todos os agentes desportivos têm as mais puras intenções.

Outros há (bom dia, José Manuel Delgado e Vítor Serpa!) que até nem têm problemas em agitar a bandeira da suspeição quando é o seu clube a sentir-se prejudicado. Estes senhores deviam ser proibidos de dirigir um jornal. E deve ser uma questão de tempo até O Jogo seguir o mesmo caminho, a avaliar pelo desvio que o centro do poder está a sofrer.

É esta a suprema hipocrisia do jornalismo desportivo português: em vez de fazerem o seu trabalho e atacarem o que está mal, preferem inventar uma realidade alternativa mais cómoda - seja por um sentido de ética retorcido, seja por serem coniventes com a agenda de determinados clubes.

Chamaram-me recentemente à atenção de um texto de José Diogo Quintela, escrito em 2006, que assenta que nem uma luva à realidade que se verifica 9 anos depois - e que comprova de forma clara que a postura dos jornais em não perseguir os podres do futebol português é deliberado e parte dos seus próprios responsáveis:



MEXENDO NO LIXO: Este é longo, desculpem lá.

No Sábado, em Alvalade, houve um golo marcado com a mão. Apesar de o árbitro o validar, apesar de Ronny, o marcador, negar tê-lo marcado com a mão, a verdade é que o golo é irregular.
É uma boa analogia para o que se passa nos bastidores do futebol português. Os tribunais consideram as escutas inválidas, a lei pode ser inconstitucional, os intervenientes podem dizer que é uma “situação normal”. Mas a verdade é que as conversas tiveram lugar e que são criminosas.
Apesar disto se passar no futebol, não é nos jornais desportivos que lemos sobre estas coisas, é noutras publicações. Por isso, num inquérito para o jornal Record, quando me perguntaram “o que gostaria de ler amanhã no Record?”, eu respondi “uma notícia qualquer sobre escutas e corrupção, que não seja primeiro dada nos jornais generalistas.”
Passados alguns dias, o director do Record, Alexandre Pais, escreveu isto:

“José Diogo Quintela disse, nestas colunas, que gostaria de ler amanhã no Record "uma notícia qualquer sobre escutas e corrupção que não seja primeiro dada nos jornais generalistas". Trata-se de um desejo difícil de concretizar, pois quando o futebol perder de todo a credibilidade - traído por aqueles a quem dá de comer - aos generalistas não faltarão outros temas para exibir barba rija. Mas, morto o futebol, o Record perderá a razão de existir.

Que mexam no lixo que os tribunais largaram. Nós pertencemos a um circo que vive de emoções - de golos e de erros, títulos e de frustrações. E não temos vergonha disso.”Confesso-me espantado. Por duas razões: primeiro, por dar mais importância a esta resposta do que à que eu dou à pergunta “Morangos com Açúcar ou Floribella”, de superior interesse. Segundo, pela assunção sincera da conivência da imprensa desportiva com as burlas do futebol português.

Há conversas (que ninguém desmentiu) em que se fala de comprar árbitros para influenciar resultados. De jogos de futebol. Que é um desporto. Coberto pelos jornais desportivos. Não totalmente, digo eu.
E Alexandre Pais vem dizer, com desfaçatez, que não vai mexer no “lixo que os tribunais largaram”. Acho que não sabe que, ao não querer falar nisso, Alexandre Pais e os outros jornais desportivos estão, no mínimo, a forrar o caixote onde está esse lixo. É que os tribunais podem ter largado o lixo, mas não foram os tribunais que o fizeram. Foram aqueles que, pelos vistos, “dão de comer” aos jornais desportivos. Curiosa expressão. Julgava que quem dava de comer eram quem pagava, i.e. os leitores.
Pelos vistos, quem dá de comer são os dirigentes a quem os jornalistas prestam vassalagem. Aliás, exagero. Não são os jornalistas. Quem, conscientemente, sonega informação aos leitores, não é um jornalista. É, porventura, um divulgador da actividade desportiva. Faz agendas e dá resultados, vá lá. E a “morte do futebol”, em vez de ser evitada por este silêncio, é ajudada.
Gosto especialmente quando Alexandre Pais diz “. Nós pertencemos a um circo que vive de emoções – de golos e de erros, títulos e de frustrações.” Para já, porque é uma afirmação peca por defeito. É preciso acrescentar que há emoções que são falsas, porque há golos roubados, erros combinados, títulos pagos e frustrações que não têm que ver com o que se passa no campo, mas sim com o que se passa num restaurante qualquer de beira de estrada, onde a um fiscal de linha é prometida uma meretriz e um telemóvel com 3G, novinho em folha.
Depois, gosto da frase porque parece estar a insinuar que quem silencia, fá-lo porque gosta de futebol. Como se nós, os tagarelas e curiosos, não gostássemos. Não só isso, estamos a contribuir para a falada “morte do futebol”. E, como tal, para o fim da razão do Record existir. Mas, tão facilmente como Alexandre Pais diz isto, eu inverto o argumento: quem não gosta de futebol e contribui para a sua morte é quem silencia, e, se é para prestar esse serviço, se calhar não faz sentido o Record existir. Quem diz Record, diz qualquer um dos outros dois diários desportivos que teimam em fingir que nada passa.
Alexandre Pais finaliza com “e não temos vergonha disso”. É de louvar a admissão, mas é redundante. Já se tinha percebido que não têm vergonha. Mas não são os únicos.

Ps – para mais informação, leiam este texto da Leonor Pinhão, n’A Bola. A parte mais sumarenta é esta:

"Há 20 anos, ou talvez mais, dois jogos decisivos da derradeira jornada de uma série qualquer dos campeonatos distritais de futebol terminaram com resultados impensáveis. Qualquer coisa como 18-6, um, e 21-7, o outro.

Na altura eu era jornalista de A BOLA. Todos os domingos recebia as chamadas telefónicas dos correspondentes locais e tomava nota dos jogos e das classificações. O despropósito dos números dos golos daqueles dois jogos motivou-me a querer saber porquê e como e quem.

A curiosidade profissional foi rapidamente satisfeita. Os dois clubes supergoleadores de terras vizinhas disputavam entre si a subida de escalão e estavam igualados em pontos a uma jornada do fim. A temporada iria resolver-se pela diferença de golos. E até nesse pormenor as duas equipas rivais tinham um score idêntico.

E todos tiveram a mesma ideia. Os guarda-redes das equipas adversárias foram amaciados, os árbitros foram sensibilizados, alguns jogadores das equipas pretendentes à subida rubricaram exibições não menos estranhas e marcaram golos na própria baliza. Os dois resultados avolumaram-se até ao ponto da demência. E porquê? Porque cada equipa tinha um espião no campo do adversário. A missão do espião era correr para o telefone do café mais próximo sempre que houvesse um golo e informar os da sua cor da marcha do marcador.
Nunca dois espiões correram tanto e telefonaram tanto. E, assim, dentro das quatro linhas os jogadores iam sabendo como paravam as modas e os golos que tinham de deixar entrar, uns, e que tinham de marcar, outros.
A história tinha pinceladas neo-realistas. Cheguei a falar com algumas testemunhas dos acontecimentos e houve uma (torcia pelo clube que acabou por ficar em segundo lugar e não subir) que me garantiu ter a GNR ajudado o clube adversário ao disponibilizar ao espião os meios sofisticados de comunicação telefónica da sua carrinha destacada para manter a segurança pública do espectáculo.
Recolhida esta primeira dose de informação dirigi-me ao mítico chefe de redacção de A BOLA, Vítor Santos, e, contando o que já sabia, pedi autorização para me deslocar até às duas localidades em questão para fazer uma reportagem.
— Para fazer o quê? — perguntou o meu chefe.
— Uma reportagem. Falar com os dirigentes, com os jogadores, com os espectadores…
— Pois, pois…
— Ia eu e um fotógrafo. É uma grande história, chefe! — insisti num entusiasmo pueril.
Mas não tive sorte nenhuma.
— Sabes, rapariga, eu acho melhor não tocar nisso — disse-me o Vítor Santos.
Olhou-me nos olhos, inclinou-se para trás na sua cadeira de chefe e cruzou as mãos em cima da barriga.
— Não tocar nisso?— Nem ao de leve. Essas coisas existem, sempre hão-de existir mas torná-las públicas faz mal ao futebol e nós, jornalistas, não podemos fazer mal ao futebol." ZDQ




Lembram-se da última vez que algum dos jornais, rádio ou televisão fez uma peça de investigação? Eu não. E nem é por faltarem temas que justifiquem a sua atenção: quem são os senhores que se escondem atrás de Nélio Lucas e da Doyen? Como é que o Benfica não comunica à CMVM uma suposta venda de Cancelo por 15 milhões? Como é que aparece no R&C do Porto uma referência à existência de um empréstimo de um fundo cujas taxas de juro dependem dos valores da venda de Herrera?

Ninguém pergunta nada aos dirigentes nem ninguém se dá sequer ao trabalho de tentar perceber o que se passa, apesar de não faltarem oportunidades para o fazer. Pelo contrário, limitam-se a reportar as versões oficiais sem qualquer espírito crítico, e em alguns casos até chegam a elogiar essas fabulosas vendas e as gestões de quem as consegue concretizar. No fundo não querem incomodar os poderosos do futebol, e isto é para mim a melhor prova de que hoje não existe jornalismo desportivo verdadeiramente independente em Portugal. 

Se queremos investigação, temos que esperar que sejam jornalistas estrangeiros a tomar a iniciativa. E felizmente, há quem comece a fazê-lo. Querem ler sobre o takeover que Jorge Mendes fez à formação do Benfica? Podem fazê-lo AQUI. Querem ler alguém que esteja efetivamente disposto a confrontar a Doyen sobre a sua atividade e sobre a sua versão das polémicas em que estão envolvidos? Podem fazê-lo AQUI. E poderia continuar com outros exemplos.

Por cá é um deserto. Em vez de termos um jornalismo desportivo que comente de forma isenta, reporte factos e investigue situações mais obscuras, estamos cada vez mais limitados a um conjunto de órgãos que vive diariamente para a especulação, para alimentar polémicas e para tentar impingir agendas de terceiros ao seu público, com pouco ou nenhum contraditório. O jornalista desportivo é uma espécie que está em vias de extinção em Portugal, cujo habitat tem sido gradualmente ocupado pela espécie invasora dos redatores de newsletters glorificadas.