Estado de sítio. Alta tensão. Estado de emergência. Taça dos horrores. Bronca. Caos. As manchetes das capas dos desportivos dos últimos dois dias resumem bem o ponto a que chegou o futebol português. No centro da polémica está a arbitragem, algo que não é propriamente uma novidade na história das últimas décadas do futebol português.
Não é difícil perceber como se chegou a este estado: dez anos de liderança de Vítor Pereira, dez anos em que houve tempo e condições para que se formasse o atual quadro de árbitros, dez anos em que se seguiu um critério de ascensão de novos valores até ao primeiro escalão da arbitragem que assentou na lealdade a um determinado clube.
Não espanta, portanto, que estes árbitros não sintam qualquer pudor ou receio em decidir para um lado ou para o outro conforme as cores das camisolas. Dá para perceber que sentem as costas bem protegidas por quem manda no futebol em Portugal. Os únicos árbitros que estão realmente em risco são aqueles que não dançam ao ritmo da música tocada pelo DDT. A melhor demonstração de poder que houve até hoje na arbitragem nacional foi a forma como Marco Ferreira foi despromovido, após ter estado em duas derrotas do Benfica - e não obstante ter sido nomeado para a final da Taça de Portugal, distinção que normalmente fica reservada para árbitros que fazem uma boa época.
Infelizmente, serão poucos os dirigentes federativos e jornalistas que procurarão fazer um diagnóstico preciso do vergonhoso estado em que a arbitragem voltou a cair. Muito menos haverá quem tenha coragem para tomar medidas exemplares. A ação de determinados branqueadores - os mesmos que se apressaram em partilhar a dor benfiquista sobre o choro do antijogo - já se começa a fazer sentir, e não tardará muito para que volte tudo ao ponto em que estava há três dias. A única diferença é que o Benfica tem a estrada aberta para a conquista de mais um título. É que mesmo estando o Sporting em má forma de há alguns meses para cá, foram necessários, no dérbi de dezembro, dois erros de arbitragem grosseiros para o Benfica sair vencedor no seu próprio terreno.
O mal está feito, começa a haver uma escalada de tensão perigosa, que ninguém sabe onde irá parar. Ontem, um grupo de adeptos - supostamente portistas - entrou no centro de treinos dos árbitros, na Maia, e ameaçaram Artur Soares Dias, a sua família, e ainda o presidente do Conselho de Arbitragem, José Fontelas Gomes, que também se encontrava no local. Considerando que o Porto jogará amanhã em Paços de Ferreira e que Artur Soares Dias será o juiz da partida, é impossível que o árbitro entre no relvado sem se sentir condicionado pelo que se passou. Como reagiu o árbitro, o CA e a classe em geral? Condenando o sucedido de forma veemente e decidindo a escusa do árbitro da partida de amanhã? Não. Demonstrando preocupação e convocando uma reunião com todos os clubes profissionais, para debater o que se está a passar.
Há cinco anos, na época de 2011/12, o Sporting foi prejudicado de forma óbvia no arranque do campeonato. O clube reagiu apresentando um conjunto de propostas para o setor, a par de críticas ao que se estava a passar. Na altura, Godinho Lopes disse:
"Não vou tolerar a falta de isenção demonstrada em jogos do Sporting. Posso provar erros sistemáticos e isso é incompetência. A forma como somos tratados em Alvalade revela falta de respeito. Não queremos ser beneficiados, mas não aceitaremos ser prejudicados."
O Sporting também se demonstrou desagradado com a nomeação de João "pode ser" Ferreira para a partida seguinte, que se disputaria em Aveiro, contra o Beira-Mar. O mesmo João Ferreira que, curiosamente, é hoje um dos vice-presidentes do Conselho de Arbitragem. Apesar de se estar muito, muito longe da gravidade do episódio que aconteceu ontem, e apesar de os protestos do Sporting não terem sido particularmente fortes (um ano antes, o Benfica tinha sido bem mais violento, após uma derrota em Guimarães, onde ameaçou não comparecer à Taça da Liga e de boicotar a presença dos seus adeptos nos jogos fora), João Ferreira recusou-se a arbitrar o Beira-Mar - Sporting. A atitude foi seguida, em solidariedade, por todos os outros árbitros. A classe da arbitragem encheu o peito e recusou-se a arbitrar a partida. Estava decidido o boicote aos jogos do Sporting.
Para além dos campos que vão inclinando, semana após semana, nos relvados nacionais, a diferença de atitude perante protestos do Sporting em relação a protestos de Benfica e Porto é a melhor prova de que os árbitros, enquanto classe, se habituaram a desrespeitar o Sporting. Enchem o peito e põe-se em bicos de pés para nos afrontar, mas acobardam-se, pedem desculpa e tentam ser conciliadores quando os queixosos são Porto ou Benfica. Eu também sou do tempo em que um adepto agrediu um árbitro auxiliar em pleno jogo sem que tenha havido qualquer punição ou reação da classe dos árbitros e da FPF.
Assim se explica muito do que foram os últimos 30 anos do futebol português.