quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Jornalismo desportivo em Portugal: o copo vazio e o copo cheio

São poucas as coisas na vida que não podem ser encaradas de formas distintas. É perfeitamente possível que o mesmo facto possa ser abordado por uma via mais positiva ou por uma via mais negativa. Quando esses temas dizem respeito a um clube de futebol, é normal que os adeptos tentem encará-lo de uma forma mais construtiva e que os rivais o explorem de uma forma mais destrutiva. Quanto à comunicação social, espera-se que aborde preferencialmente os dois lados da questão, independentemente do nome do clube que se discute.

Vem isto a propósito da forma como o Record decidiu destacar a estreia de Daniel Podence pela equipa principal contra o Espinho:


O Record dedicou uma página inteira a este assunto. Concordo que o facto de alguns reforços do Sporting ainda não terem jogado tem interesse jornalístico, mas será que não seria também pertinente abordar a estreia de Podence pela vertente de mais um jogador da formação ter sido utilizado?

Será que referir que Podence é o 10º jogador da formação a ser utilizado esta época em jogos oficiais (depois de Rui Patrício, Cédric, Esgaio, William, Adrien, André Martins, João Mário, Carlos Mané e Nani) não tem também algum interesse jornalístico? 10 até é um número redondo... será que duas mãos cheias de jogadores não justificariam um espacinho na capa?.

A hipocrisia é tanto maior quando vemos que duas capas mais recentes do Record que destacam o Benfica, e que referem a temática formação e gestão do plantel, são abordadas de uma forma altamente elogiosa (no caso da formação) ou simplesmente neutra (no caso da gestão do plantel).

Para serem coerentes, não poderiam abordar pela ótica de o Benfica procurar contratar o 4º lateral esquerdo da época - depois de Djavan, Benito e Eliseu, que juntos custaram 5 ou 6 milhões?


Poderíamos também falar na quantidade de jogadores do Benfica que ainda não justificaram a sua contratação. Aos €5/6M gastos em laterais esquerdos que não convencem, ainda podemos juntar Samaris (€10M), Cristante (€6M), Bebé (€3M), Derley (€2,5M), César (€3M), Luís Felipe (€1M), Dawidowicz (€2M e só jogou pela equipa B) ou Victor Andrade (€3,5M e também só jogou pela equipa B). Quase €40M em reforços que não convencem Jesus, que nos jogos a doer prefere não apostar no banco que tem. Das contratações feitas sobram Júlio César, Talisca e Jonas.

Infelizmente a única coerência que se encontra é a necessidade cíclica de tecerem loas à gestão de Vieira. Pergunto: que mérito existe numa política de betão feita à base de sucessivos empréstimos bancários que nunca são amortizados? Qualquer pessoa com acesso a crédito ilimitado conseguiria fazê-lo. 


Já fizeram uma análise à evolução dos empréstimos bancários e obrigacionistas do Benfica ao longo dos últimos anos? A tendência tem sido apenas uma: dívida crescente, mesmo com as vendas milionárias que têm sido realizadas pelo clube.

Em alternativa, não poderiam referir a persistente falta de aposta nos jogadores da formação? O único jogador que o centro de estágios do Seixal produziu a ser utilizado esta época foi Gonçalo Guedes que, à imagem de Podence, também entrou como suplente num jogo da Taça de Portugal contra uma equipa de um escalão inferior. Mas aqui já se consegue vislumbrar um rosto da nova política.


Nada disto é novo. Esta fonte inesgotável de elogios a Vieira não são mais que reportagens requentadas que devem ser publicadas ao abrigo do protocolo que existe entre a Cofina e o Benfica. É que no ano passado tivemos que gramar com isto:



Uma mão cheia de nada, é o que é. As desculpas para a falta de aposta na formação já se esgotaram há muito. O centro de estágios do Seixal já existe há mais de 8 anos e desde então o investimento sucessivo em novas infraestruturas nunca abrandou.

Por muito que Vieira diga que a aposta da formação será uma realidade (há quanto tempo ouvimos isto?), enquanto Jesus lá estiver (e vai estar ainda durante mais alguns anos) o presidente não terá "nozes" para impôr a sua "visão". Dá muito jeito a Vieira ter alguém como Jesus à frente do futebol do clube (não só porque é competente, mas também porque não se importa de servir de saco de pancada quando as coisas correm mal), e nada deve aterrorizá-lo mais que se ver na necessidade de procurar outro treinador para a equipa.

Não estou a dizer que tudo é mau - para todos os efeitos o Benfica lidera o campeonato e os resultados das camadas jovens do Benfica são inquestionavelmente bons -, simplesmente quero dizer que também havia material suficiente para justificar uma abordagem de copo meio-vazio para os temas que mencionei, se o Record optasse por seguir uma linha coerente com a notícia de Podence. Resta saber por que motivo não o fez.

P.S.: o mesmo exercício das contratações que tardam em render poderia ser feito também para o Porto: Opare, Campaña, Otávio, Ricardo ainda não jogaram, enquanto que outros como Marcano, Jose Angel, Evandro, Aboubakar ou Andrés Fernandez tardam em impôr-se. Aqui a diferença é que ninguém sabe muito bem quanto é que eles custaram...