quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Jorge Mendes e o fim dos fundos


Começo por constatar o óbvio: é natural que Jorge Mendes se apresente agora e no futuro como um dos mais ferozes opositores à decisão da FIFA em banir a propriedade partilhada de passes com fundos.

Qualquer medida que restrinja de alguma forma a movimentação de jogadores entre clubes afeta a atividade de quem vive à base de comissões de transferências, mas no caso de Jorge Mendes o impacto ainda é superior, pois há muito que deixou de ser um simples empresário de jogadores. Uma fatia crescente da sua atividade passa por agir precisamente como uma espécie de fundo, comprando percentagens de passes de jogadores promissores (se a totalidade ou parcelas ninguém sabe), colocando-os em clubes "satélite" (como o Rio Ave ou Braga) para serem valorizados, com o objetivo final de os vender e arrebatar a maior parte dos lucros.

Portanto, é evidente que o empresário é tudo menos uma parte desinteressada nesta questão, e não será certamente o futuro do futebol português que estará no topo das suas prioridades. Analisemos os argumentos apresentados por Jorge Mendes:


O fim dos fundos prejudica os clubes?

Portugal é um país demasiado pequeno e pobre para que os nossos clubes se possam bater de igual para igual com os colossos do futebol europeu - com ou sem fundos. Ao longo dos últimos anos os clubes nacionais atravessaram fases de maior ou menor sucesso desportivo, mas sempre tiveram défices operacionais que gradualmente foram degradando a sua situação financeira. E é um facto que esse desequilíbrio aumentou significativamente desde que começaram a recorrer aos fundos.

Temos que reconhecer que o Sporting acabou por ficar na situação dramática por que conhecemos por culpa própria, e uma das principais falhas foi a utilização dos fundos de forma trágica. Em vez de os usar para atrair um pequeno número de jogadores de grande potencial, fez uma péssima prospeção e comprou uma legião de jogadores sobreavaliados que à partida tornavam a sua valorização quase impossível. Pior, vendeu percentagens significativas de jogadores da academia aos fundos por valores irrisórios. Formou-se assim uma espécie de tempestade perfeita para o descalabro financeiro: uma folha salarial elevadíssima de jogadores com pouco mercado e a cedência de percentagens elevadas de jovens da formação de enorme potencial para os quais não foi necessário investir praticamente nenhum dinheiro. Presente arruinado e futuro hipotecado.

Benfica e Porto não são agremiações que eu tenha em grande estima, mas tenho que reconhecer que têm sabido valorizar os seus jogadores (coisa que o Sporting tem sido incapaz nos últimos 6, 7 anos). O problema é que Porto e Benfica precisam de valorizar os seus ativos e não os de terceiros, caso contrário não conseguem equilibrar as suas contas.

Mesmo no caso de Benfica e Porto a situação financeira nunca foi tão má, apesar das vendas milionárias que têm sido feitas todos os anos. A questão é que, com as comissões e as partilhas de passes, as mais-valias acabam por representar uma pequena parte do valor total da transação.

Parte da explicação do recurso a fundos está no facto de os clubes não terem capacidade autónoma para trazer os jogadores de maior potencial - precisamente porque a ação dos fundos acabou por inflacionar a avaliação desses atletas. É sabido que neste momento os fundos já são detentores dos passes da grande maioria de jogadores brasileiros com potencial e acabam por distorcer o mercado com a sua ação. Com os fundos fora de cena - o próprio Jorge Mendes confirmou que a procura de jogadores reduziu-se significativamente nesta janela de transferências - a procura reduz-se e será inevitável que os preços voltem a baixar.

Desportivamente, a curto prazo, é evidente que a abolição dos fundos prejudica quem se habituou a trabalhar com eles (ou a depender deles). Mas numa perspetiva de médio / longo prazo, se os clubes continuarem a desenvolver os seus jogadores de forma competente, o fim dos fundos será certamente um fator positivo.


O fim dos fundos prejudica os jogadores?

Os melhores jogadores continuarão a ter sempre mercado. Os outros poderão ver adiada a sua passagem para ligas mais competitivas. Mas, na realidade, por cada jogador que não for transferido há um outro que continua a jogar. O futebol continua a ser um desporto em que apenas alinham simultaneamente 11 jogadores de cada lado, e os plantéis continuam a ter uma média de 26-28 jogadores. Aqui o prejuízo de uns é o benefício de outros, pelo que o fim dos fundos simplesmente não afeta a classe dos jogadores em si. E a qualidade continuará sempre a ser identificada e recompensada rapidamente - com ou sem fundos.


Foram os fundos que permitiram boas prestações dos clubes portugueses nas competições europeias?


Nos últimos 10 anos os clubes portugueses foram 3 vezes aos quartos-de-final da Champions, o que não é propriamente um feito incrível. O Porto de Mourinho foi campeão europeu sem recurso a fundos. É verdade que os tempos são outros e provavelmente o fosso entre os clubes mais ricos da Europa e os restantes nunca foi tão grande, mas a sorte dos nossos clubes continuará sempre a depender mais da sorte no alinhamento dos grupos do que dos jogadores que os fundos colocam ou deixam de fornecer.

E será mesmo impossível ganhar alguma competição europeia? No ano passado o Benfica foi à final da Liga Europa com apenas um jogador pertencente a fundos (Markovic - a não ser que Jorge Mendes saiba algo que o público em geral desconheça). Esteve a dois penáltis certeiros de a ganhar. 

E, já agora, gostaria de saber se o Sevilha não alinhou também jogadores colocados por fundos... Se por acaso tivesse, será que o Benfica não teria ganho se o Sevilha não pudesse contar com eles?


O Atlético Madrid nunca teria sido campeão sem os fundos

Até pode ser verdade, mas o que é que o futebol português tem a ver com isso?


Se Jorge Mendes comprar um clube, está proibido de investir e colocar dinheiro no próprio clube?

De forma alguma. Pode injetar dinheiro no clube de forma perfeitamente legal e transparente através de aumentos de capital na SAD que adquirir, ou através de patrocínios - que é aquilo que muitos outros clubes já fazem hoje em dia. Poderia era ter problemas com o Financial Fair Play enquanto não assegurasse outro tipo de receitas, mas isso é outra conversa - não tem nada a ver com os fundos.


Os clubes deixam de ter mecanismos para conseguirem competir ao mais alto nível?

Com ou sem fundos, nunca conseguiremos competir ao mais alto nível. A curto prazo podemos perder competitividade em relação aos clubes dos países que já baniram os fundos, mas a médio / longo prazo é possível recuperar. E internamente passam a estar todos em pé de igualdade, sem ajudas artificiais.



É óbvio que os grandes prejudicados com o fim dos fundos são os empresários e os misteriosos investidores que estão por trás dessas opacas instituições. Foram os empresários e os fundos que promoveram a surreal rotatividade de jogadores a que se assiste a nível mundial. Fazem a cabeça em água aos jogadores para forçarem saídas de forma a poderem encaixar as suas comissões ou mais-valias. E fazem-no sem risco: se um clube não o conseguir valorizar e vender ao fim de alguns anos, vai ter que pagar ao fundo o valor investido. 

Definitivamente não é o futebol português que está em risco com a medida tomada pela FIFA.