Ao longo dos últimos anos, um acompanhamento completo dos temas que vão dominando o futebol português vem exigindo competências cada vez maiores que há muito ultrapassaram o mero conhecimento das regras do jogo, já que coisas tão díspares como a estratégia de comunicação ou a saúde financeira dos clubes são tão debatidas como o que se passa dentro das quatro linhas. Mas na passada terça-feira, provavelmente teremos alcançado um novo pináculo no que diz respeito à aplicação de conceitos de outras áreas ao futebol.
Como é sabido, Luís Filipe Vieira anunciou, após o final do jogo com o Aves, que o Benfica iria criar um gabinete de crise para acompanhar e agir sobre quem causa danos à marca.
Há quem tenha visto nisto uma medida que se impunha. Há quem tenha pensado que é apenas uma formalização, ou seja, dar uma designação formal a algo que já existia há meses, desde que o escândalo rebentou - é óbvio que o Benfica há muito que acompanhava de perto o assunto do ponto de vista comunicacional e jurídico. E há quem veja aqui uma manobra intimidatória em desespero para tentar conter um fluxo de notícias que, efetivamente, são muito prejudiciais para a reputação do clube. Portanto, houve reações de apoio, ceticismo e de desvalorização da medida. Mas depois, numa categoria à parte, houve a reação de Rui Pedro Braz:
É extraordinário: até nisto estão dez anos à frente. Braz acha que, no futuro, todos os clubes terão gabinetes para gerir este tipo de situações. É caso para dizer: "Saí da frente ó Drucker!", o Braz dos défices positivos parece querer também enveredar pelo ramo da estratégia organizacional.
Obviamente que é ridículo que Braz esteja a tentar convencer o seu público de que esta medida do Benfica é algo de inovador no mundo do futebol, como se a reação natural de qualquer organização em situações de crise não fosse chamar pessoas de vários departamentos que, de uma forma ou outra, podem ter contribuições importantes para dar para a contenção ou resolução de situações muito delicadas. Seja no futebol, seja numa empresa, seja num organismo público, seja no Vaticano, isso sempre se fez. As únicas coisas realmente inovadoras neste caso são a teia intricada de influências que o clube tem, e o facto de haver várias iniciativas em várias frentes (leaks, PJ) para desmontar toda essa rede.
Por falar nos leaks, também foi curioso assistir, nesse mesmo programa, a ênfase que Rui Pedro Braz deu à questão da violação de privacidade. Tem sido um tema recorrente no seu discurso, como poderão ver neste pequeno vídeo:
Basta recuarmos um par de anos no tempo para vermos que a questão da violação de privacidade nem sempre foi uma preocupação fundamental para Braz. Por exemplo, quando decidiu noticiar ao cêntimo o valor auferido por Jorge Jesus quando este passou a ser treinador do Sporting:
Para quem se preocupa tanto com a privacidade, é estranho não levar em consideração o direito que um indivíduo tem de não ter o seu salário a ser dissecado na praça pública.
Claro que, para ser justo, o salário de Jorge Jesus era um tema quente na altura, e quem o divulgou inicialmente foi o Football Leaks, ao disponibilizar o contrato entre Jesus e o Sporting no seu blogue. Portanto, acho normal que Braz tivesse feito esta análise, como seria normal que fizesse outras análises igualmente exaustivas com os dados disponibilizados nos últimos meses sobre o Benfca -como, por exemplo, a inclusão na venda de Gaitán de direitos de opção de jogadores do Atlético Madrid para empolar artificialmente o valor da venda, ou o facto de Jonas receber parcialmente o salário através de uma empresa do irmão. Resta saber por que não o fez nestes últimos casos. Será que tem andado distraído?
Mas já que falamos em Football Leaks, vale a pena recordar a opinião de Braz quando eram os documentos privados do Sporting a serem despejados na internet:
Recapitulando:
Football Leaks? "A forma como nós estamos a ter conhecimento de inúmeras coisas relacionadas com o futebol que até há bem pouco tempo não tínhamos, isso é positivo!"
E-toupeira? "Isto é uma coisa que não pode acontecer. Em primeira instância estamos a falar de um crime de invasão de privacidade, estamos a falar de um crime de divulgação de informação privada."
Eu diria que a frase sobre o Football Leaks assenta que nem uma luva ao caso do e-toupeira, mas pelos vistos há privacidades de primeira e privacidades de segunda. É assim quando se fazem análises em função dos protagonistas e não em função dos factos.