Coisa tão certa quanto a morte e os impostos, é aparecerem as análises monocromáticas de muitos dos nossos comentadores da bola após um desaire do Sporting. Análises monocromáticas no sentido em que são, invariavelmente, incapazes de encontrar aspetos positivos - ou sequer atenuantes - no rumo que as coisas tomaram. É o chamado totobola de segunda-feira, em que as opiniões são debitadas exclusivamente em função dos gostos pessoais e do facto de a bola, após bater no poste, se ter dirigido para dentro da baliza ou para fora de campo. Não têm capacidade (ou vontade) para perceber ou referir, em simultâneo, aspetos positivos e negativos. Ou preto, ou branco. Monocromáticas.
Está mais que visto que um dos alvos a abater será Jorge Jesus, e não tardarão a surgir os debates em que se discutirá se o treinador deverá ou não continuar à frente da equipa técnica do Sporting na próxima época. É fácil bater em Jesus num momento destes, apesar de, sinceramente, me parecer prematuro, pois ainda há muitos objetivos para atingir: a Taça de Portugal está em aberto, veremos até onde conseguiremos chegar na Liga Europa, e há um segundo lugar do campeonato - com consequente acesso à pré-qualificação da Liga dos Campeões - por disputar. Como tal, as contas definitivas devem ser feitas apenas quando a época acabar.
No entanto, isso não quer dizer que não se possam apontar críticas às opções de Jesus, da mesma forma que é conveniente recordarmo-nos dos aspetos bons do trabalho que desenvolveu esta época. Nesse sentido, aqui ficam os meus dois tostões sobre o que me parece que não tem estado a correr bem de janeiro para cá - convém relembrar que, até dezembro, era difícil exigir melhor a uma equipa que se manteve na corrida em todas as competições em que estava inserida.
Para mim, os principais pecados de Jesus têm sido os seguintes:
O reforços do plantel em janeiro
Se perguntassem à maioria dos adeptos que posições queriam ver reforçadas durante o mês de janeiro, a maior parte responderia, de caras, da seguinte forma: um defesa-esquerdo, um box-to-box, um extremo desequilibrador e um ponta-de-lança. De certa forma, todas essas posições foram reforçadas, mas a generalidade dos nomes encontrados ficaram aquém das expectativas.
Dois vieram numa lógica de rendimento imediato: Rúben Ribeiro e Montero. Rúben Ribeiro, até ver, não tem demonstrado ter o perfil de que necessitávamos - eu via maior necessidade de um jogador mais à Gelson, capaz de acelerar o jogo e com facilidade de arranjar espaços onde eles não existem. Montero, por sua vez, não me está a desiludir porque está a fazer exatamente aquilo que eu esperava - porque me lembrava bem daquilo que era o seu rendimento antes de ter ido para a China -, ou seja, por cada jogo bom que faz, há outros dois ou três que lhe passam completamente ao lado.
Os outros reforços, Lumor, Misic e Wendel, vieram numa perspetiva de futuro. Misic veio reforçar uma posição excedentária num plantel onde já existem William, Battaglia, Palhinha e Petrovic, e, como se tem visto, tem tido dificuldades em arranjar espaço para jogar. Está visto que Lumor só cheirará a bola quando Coentrão e Acuña não estiverem disponíveis, ou seja, nesta época não contará para o totobola. Wendel é o caso mais complicado de compreender, porque, em teoria, era o grande reforço de inverno do Sporting. Mesmo sabendo que o futebol brasileiro é, taticamente, muito mais relaxado que o português, esperava que tivesse havido muito mais oportunidades de utilização em função do seu elevado potencial. Sinceramente, não vejo que fosse um risco assim tão grande a sua utilização contra adversários de meio e fundo da tabela, e assim dar-se-ia descanso a um Bruno Fernandes que tem sido espremido até à exaustão de quatro em quatro dias.
As inscrições na Liga Europa
Numa altura em que a prioridade principal era o campeonato, parecia-me lógico que se aproveitasse a Liga Europa - pelo menos nestas eliminatórias iniciais - para dar uso à profundidade do plantel, resguardando os principais jogadores para as competições internas (campeonato, Taça de Portugal e Taça da Liga em fases decisivas). Jesus só podia fazer três alterações na lista e decidiu inscrever Bryan Ruiz, Montero e Rúben Ribeiro. Percebo Rúben, até consigo aceitar a escolha de Montero, mas a inclusão de Bryan pareceu-me totalmente despropositada, considerando só termos um lateral esquerdo. E lá está, numa ótica de preparar o futuro, pareciam-me jogos ideais para ir lançando Misic e Wendel.
Nota posterior: Misic não podia ser inscrito porque jogou na Liga Europa pelo Rijeka.
A gestão de plantel
Ao longo das últimas semanas, tenho tido muita dificuldade em compreender algumas das escolhas de Jesus na gestão do plantel. Deixo aqui um par de exemplos.
Primeiro quando, a ganhar por 3-1 em Astana - com a eliminatória praticamente decidida -, não aproveitou para amarelar vários jogadores que estavam em risco de suspensão, como Bruno Fernandes, Gelson, Coentrão e Gelson. Espero que, se tudo correr da melhor forma na receção ao Plzen, haja espaço para corrigir esse erro.
Depois, na segunda mão contra o Astana, ao decidir levar a jogo Dost - quando me parecia um bom jogo para Doumbia ou até Montero (nenhum dos dois foi a jogo) - e Bruno Fernandes. Aceitaria, no entanto, que colocasse Bruno Fernandes a titular caso fosse para o deixar de fora no jogo seguinte contra o Moreirense (pois estava em risco de suspensão para o Dragão), mas, como sabemos, acabou por ser titular nos dois encontros. Ainda assim, é justo referir que Jesus rodou bastante a equipa nessa partida, deixando de fora Piccini, Coates, Acuña e Gelson.
Apesar disso, não acho que Jesus tenha tido responsabilidade na lesão de Dost - não parece que tenha sido uma lesão ligada a uma carga excessiva de jogos, e que poderia perfeitamente ter acontecido num treino.
Refém das suas próprias ideias de jogo
O Sporting atual está muito longe da versão rolo compressor de há duas épocas. A explicação para isto está, a meu ver, intimamente ligada ao fracasso rotundo de 2016/17: Jesus tomou como prioridade para 2017/18 não ter os mesmos problemas defensivos, que ditaram o afastamento prematuro do Sporting da luta por todas as competições na época passada. Justiça seja feita, o Sporting está muito mais sólido defensivamente, mas a que custo? Olhando para o onze, temos dois laterais pouco ofensivos (mesmo Coentrão - que tem feito uma excelente época - sobe muito menos do que quando estava no seu auge), dois alas/extremos com um enorme índice de trabalho defensivo (o que acaba, de uma forma ou de outra, por condicionar a disponibilidade para gerar desequilíbrios na frente) e dois médios centro que, neste sistema de jogo, não têm qualquer margem para facilitar quando não temos a bola em nosso poder.
Quase que parece que os nossos jogadores de cariz ofensivo são escolhidos, em primeiro lugar, em função do que podem oferecer no momento defensivo. Os reflexos disso são óbvios: o Sporting costuma dominar os jogos, mas em grande parte do tempo os adversários parecem demasiado confortáveis defendendo na expectativa, porque falta repentismo ao nosso futebol. Por outras palavras, o Sporting é uma equipa demasiado previsível quando tem a bola.
Perante isto, Jesus não tem conseguido estabelecer um nível de dinamismo superior na equipa. Parece colocar sempre uma importância superior no potencial desequilíbrio defensivo da equipa do que na potencial capacidade adicional de desequilibrar na frente. Parece estar refém das suas próprias ideias de jogo, mesmo que estas não estejam a ser suficientemente adequadas para o tipo de oposição que a equipa encontra.
Os pecados de Jesus que referi atrás devem, no entanto, serem enquadrados no panorama global das coisas. Em primeiro lugar, as condicionantes:
- O desgaste. De entre os grandes, o Sporting é a equipa que tem mais jogos oficiais disputados: 45, contra 41 de Porto e 38 de Benfica. Ou seja, o fator desgaste tem tido, nos últimos dois meses, um peso que não se pode ser negligenciado.
- O Sporting não tem a mesma margem de erros que os rivais. O Benfica tem os seus Tondelas, o Porto tem os seus Portimonenses, o Sporting tem constantemente adversários dispostos a morrer em campo. Há quem parta para o início da época sabendo que tem, pelo menos, 18 pontos garantidos. E depois ainda há os Césares da vida, que, mesmo sem jogarem, conseguem forçar uma série de lapsos não forçados nos setores mais recuados de algumas equipas em certos jogos. É a podridão do futebol português no seu máximo esplendor.
- As arbitragens. Desde janeiro que não temos uma única arbitragem que não tenha inclinado o campo contra nós. O VAR vai inibindo os árbitros de fazerem a sua magia habitual em lances demasiado óbvios - quer dizer, nem isso, basta lembrar o golo anulado a Doumbia frente ao Feirense -, mas os homens do apito não nos dão uma abébia quando lhes cheira a vulnerabilidade. Mathieu foi expulso por fazer o mesmo que Filipe e Rúben Dias fazem repetidamente sem punição. A expulsão de Petrovic foi uma vergonha. Ao invés, os adversários podem bater o que quiserem nos nossos jogadores, já sabem que o cartão custa mais a sair. É muito mais complicado jogar contra 14 do que contra 11.
Depois, só um cego é que não consegue ver que Jesus trouxe um nível de maturidade ao nosso futebol que há muito não se via. Para mim, a forma mais fácil de explicar a diferença pré-Jesus e pós-Jesus é a forma como encarava e encaro os desafios europeus. Há três anos, temia que qualquer jogo com uma equipa europeia de topo acabasse em goleada (ainda consequência do desastre com o Bayern). Agora, essa ideia nem me passa pela cabeça porque sei que o Sporting será capaz de discutir o jogo com qualquer adversário.
O Sporting de Jesus está construído para ser uma equipa capaz de disputar jogos contra qualquer adversário, e tem demonstrado constantemente que o consegue fazer: em toda a época, houve apenas dois jogos em que estávamos "derrotados" a 10 minutos do fim: nas deslocações a Barcelona e ao Estoril. Claro que está sujeito a que nem sempre consiga vencer, quer na Europa, quer internamente. O título nacional está perdido, mas até à jornada passada estávamos apenas com dois pontos a menos do que em 2015/16, uma época em que apenas não nos sagrámos campeões porque houve o desvirtuamento mais escandaloso de um campeonato de que há memória. Em relação a esta época, não me parece anormal que tenhamos empatado cinco jogos e perdido dois, em 25 jornadas. O que me parece anormal é como é que os nossos rivais empatam e perdem tão pouco. As condicionantes acima listadas explicam o porquê de tamanha eficácia pontual. E, num dos casos, também se pode olhar para a diferença de rendimento interno para o nulo rendimento contra adversários europeus.
Em função de tudo aquilo que referi anteriormente, parece-me absurdo que se equacione a saída de Jesus agora ou na próxima época, assim como também acho prematuro que se fale já em renovação de contrato. Independentemente do que aconteça daqui para a frente, Jesus deve cumprir a sua quarta época ao serviço do Sporting. Isto para mim é uma evidência, mas também não deve ser interpretado como um Jorge Jesus forever, porque todos os ciclos têm o seu fim. Simplesmente, neste momento, e neste ecossistema viciado que é o futebol português, não me parece que exista outro treinador (daqueles que estão ao nosso alcance) que ofereça melhores garantias de sucesso.