quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

O revisionismo do "all in"

O estado das contas do 1º trimestre que o Sporting divulgou esta semana confirma a existência dos problemas que se adivinhavam face às insistentes notícias de que os melhores jogadores poderão ser vendidos no mercado de inverno. O desequilíbrio das contas ainda é uma realidade: o nível de custos é excessivamente alto para um clube que não está na Liga dos Campeões e não houve milagres nas receitas ordinárias, cujo crescimento está longe de ser suficiente para que a direção retire a grande e chamativa placa que colocou na montra da SAD a anunciar que estamos em época de saldos.

Não sou nem nunca fui insensível às dificuldades que se deparavam, mas a verdade é que, uma época desportiva e 4 trimestres financeiros após da eleição de Frederico Varandas, o panorama é preocupante. 

A situação financeira está apenas marginalmente melhor. Os problemas têm vindo a ser tapados recorrendo à antecipação de receitas futuras ou vendendo jogadores ao desbarato e nos piores timings possíveis, com as graves consequências desportivas que estão à vista de todos. Em meados de outubro, o clube estava fora da luta pelo campeonato, fora da Taça de Portugal e com um pé fora da Taça da Liga. O plantel é o mais fraco de há muitos anos para cá. E o mais dramático é que estamos metidos numa espiral negativa desportiva e financeira que não permite vislumbrar uma saída fácil, ainda mais perante a evidente incompetência de quem manda no futebol - não há na estrutura quem saiba contratar, não há quem saiba vender, não há quem saiba montar um plantel, não há quem proteja treinadores e jogadores, não há quem defina um rumo, não há quem mobilize os sócios e adeptos. A falta de dinheiro já não pode servir de única desculpa para o descalabro em que o clube está metido, e podemos dizer, com (triste) segurança, que a situação de hoje é, no geral, pior do que há um ano. Progressos indiscutíveis só na capacidade de colocar notícias e narrativas na imprensa para dourar a pílula.

Uma dessas narrativas, que muito me incomoda, é a das repetidas referências de Frederico Varandas e Francisco Zenha a um suposto all in feito em 2017/18. Incomoda-me porque, do ponto de vista de planeamento da época, 2017/18 foi praticamente exemplar. Houve um nível de acerto de contratações inédito, a equipa rendeu ao mais alto nível na Liga dos Campeões, venceu a Taça da Liga, e preparava-se para disputar os restantes títulos internos até ao fim quando Bruno de Carvalho decidiu começar a dar tiros sucessivos nos pés que, no final da época, foram fatais para os objetivos mínimos da equipa no campeonato e que, a partir daí, culminaria rapidamente na tragédia de que todos nos lembramos e que causou um profundo rombo (desportivo, financeiro, mas sobretudo na união do clube) que demorará ainda muitos anos a ser consertado. Não havia organização, tivesse níveis de risco elevados, aceitáveis, reduzidos ou nulos, que resistisse ao que aconteceu em maio de 2018.

A divulgação das contas do 1º trimestre de 2019/20 permite varrer em definitivo com o revisionismo do all in de 2017/18. Em 2017/18 correram-se riscos, mas perfeitamente compreensíveis face à participação na Liga dos Campeões e considerando a previsível valorização de um plantel riquíssimo. Aliás, olhando para os números dessa época e comparando-os com os de 2019/20, fica perfeitamente perceptível que, segundo a imagem dos respetivos primeiros trimestres, o nível de risco... é muito superior esta época do que há dois anos.


De lá para cá, as receitas ordinárias caíram 32% (em 2017/18 houve Liga dos Campeões), mas os custos com pessoal são agora superiores - conforme explicado no R&C, os custos com pessoal subiram por causa de 5M pagos em indemnizações que permitirão controlar melhor os custos daqui para a frente (ver o meu post sobre as contas aqui: LINK). Os custos de funcionamento (FSE's) aumentaram 42%. Para reduzir o desequilibro das contas, houve necessidade de praticamente duplicar as mais-valias em vendas de jogadores.

Nessa época do "all in", o nível do plantel era incomparavelmente melhor que o do atual. Não só havia jogadores de nível superior que vinham de trás, como também o acerto das contratações foi fenomenal: Mathieu, Battaglia, Bruno Fernandes, Acuña e Coentrão fizeram pelo menos 2/3 dos minutos totais dessa época (com Piccini muito perto dessa percentagem de utilização), e com o rendimento em campo que se sabe.


Ao invés, dos jogadores contratados esta época, só Vietto se pode considerar um titular indiscutível, enquanto Rosier vai cimentando esse estatuto - sobretudo graças às lesões constantes de Ristovski. Mas a verdade é que nenhum dos jogadores contratados esta época, com exceção de Vietto, conseguiriam lutar por um lugar no onze de 2017/18.

2017/18 foi um exemplo de como planear e preparar uma época. Seria bom que a atual direção percebesse isso. Em vez de demonizar tudo o que era feito no passado, poderia esforçar-se mais por perceber o que foi bem feito para tentar a sua replicação. Talvez assim tivesse conseguido melhor que este lindo embrulho que é o plantel 2019/20...