Chegou o momento de dar a mão à palmatória. Depois da catastrófica época de 19/20, nunca imaginei que Varandas e a sua equipa conseguissem dar a volta como deram, ainda mais num espaço de tempo tão curto. A minha descrença não se devia a falta de vontade em vê-los a ter sucesso - afinal de contas, votei nesta direção nas eleições de 2018 -, mas porque não conseguia vislumbrar qualquer rumo estratégico coerente nem capacidade para inverter a tendência de definhamento a que o clube parecia condenado no futebol. Mas, da mesma forma que há um ano me sentia defraudado, é da mais elementar justiça que afirme agora que o trabalho desenvolvido desde então foi excecional, e que sem isso não teríamos festejado o título que há tanto nos fugia.
Alguns dirão que foi sobretudo um golpe de sorte e que qualquer indivíduo pode ganhar o Euromilhões numa dada semana. Discordo por completo. Numa liga que tem os vícios que tão bem conhecemos e defrontando dois rivais com orçamentos muito superiores, sair o Euromilhões ao Sporting corresponderia a aproveitar o demérito de uma dessas equipas e garantir o acesso direto à Liga dos Campeões com um 2º lugar no campeonato. Ser campeão com este nível de brilhantismo - sem derrotas até se ter levantado o troféu -, superando em simultâneo um Porto de nível europeu e um Benfica que investiu como nunca, com o acréscimo de ter de suportar algumas arbitragens escandalosas, de ter sido perseguido pelos CDs e ANTFs e Unilabs da vida, nunca poderia ser apenas um golpe de sorte. Seria o equivalente a ganhar o Euromilhões em três semanas consecutivas - algo que, obviamente, nunca aconteceu nem nunca acontecerá, nem sequer ao cidadão mais afortunado do mundo. O Sporting pode ter tido alguma sorte em determinados momentos, como acontece com todos os campeões, mas não foi a sorte que determinou este desfecho.
O que mudou, então? Não vou repetir o que já escrevi sobre a importância de Amorim, é unânime o reconhecimento do papel central que o treinador teve. Mas um treinador não ganha sozinho, precisa de quem lhe crie as condições necessárias para desempenhar o seu trabalho da melhor forma que sabe. É aí que entra a estrutura.
Competência em várias frentes
Reforços dentro e fora de campo. A estrutura à volta de Hugo Viana foi reforçada e isso permitiu uma preparação de época incomparavelmente melhor à anterior. Os novos jogadores foram chegando a tempo e horas, sem grandes novelas ou fugas de informação, as opções que se tomaram quer nas saídas e nas entradas foram certeiras tendo sempre em consideração as componentes desportiva e financeira. Convém não esquecer que o dinheiro disponível para reforços era escasso e havia todo um plantel para reconstruir após um 4º lugar dececionante, pelo que a criatividade nas negociações foi trunfo fundamental: recorreu-se a regressos de emprestados (Palhinha, Bragança) e empréstimos (Porro, João Mário), a contratações a custo zero (Adán, Antunes) ou de custo reduzido (Feddal), a permutas para reduzir o preço (Nuno Santos) e a partilhas de passes (Pedro Gonçalves, Tabata). O Sporting gastou menos em todos os seus reforços de verão do que o Benfica gastou em Waldschmidt (ou Pedrinho, ou Everton, ou Darwin). O aproveitamento dos reforços foi quase exemplar: dos 10 jogadores que entraram, 7 foram titulares quase toda a época. Mais tarde, no mercado de inverno, houve discernimento para perceber as carências e ambição para dar ao treinador exatamente o que pretendia. No global, o desempenho no reforço do plantel foi brilhante.
Formação. A formação foi utilizada como complemento efetivo às contratações, de forma convicta e persistente, com renovações e melhorias contratuais a acontecerem de forma rápida e natural em função do rendimento demonstrado em campo. O Sporting voltou a ser o clube mais atrativo para qualquer miúdo que sonhe ser profissional, conforme referiu Rúben Amorim no dia em que lançou Essugo.
Comunicação. As intervenções públicas da estrutura foram raras e só aconteceram em situações em que o treinador não se podia expor. Seria fácil cair na tentação de procurar protagonismo, ainda mais estando na liderança do campeonato durante tanto tempo, mas nunca o fizeram - nem sequer nos festejos do título.
Covid. O risco da pandemia foi, na medida do possível, bem circunscrito. Apesar de ter sido uma das primeiras equipas, se não a primeira, a ter um surto a afetar grande parte do plantel - dificultando a preparação para o arranque temporada por indisponibilidade de jogadores e impossibilidade de realizar jogos de preparação -, a reação de isolar a equipa numa bolha foi imediata e permitiu minimizar os danos. A eliminação da Liga Europa foi talvez a consequência indireta mais nefasta (um mal que veio por bem, sabemos agora), mas felizmente não comprometeu em nada o arranque na liga.
Ligação aos adeptos. Em ano de jogos sem público, houve a inteligência de oferecer todo um novo leque de conteúdos aos sócios e adeptos que permitiram uma proximidade à equipa como nunca tinha antes existido - entrevistas do ADN de Leão, Backstage dos jogos, Inside dos treinos - e que foram fundamentais para uma completa identificação do público com a equipa.
Foi um trabalho que envolveu muitos tipos diferentes de competências, transversais a toda a organização.
Frederico Varandas, enquanto responsável máximo do clube e SAD, e Hugo Viana, como diretor de futebol, foram alvo de inúmeras críticas durante a época anterior, a maior parte justas face ao desempenho da equipa. Felizmente tiveram a força de vontade, capacidade e fortuna necessárias para inverter a situação e alcançar o impensável. Merecem o devido reconhecimento pelo excelente trabalho realizado e pela época inesquecível que nos proporcionaram.
O que se segue?
Depois de uma época desastrosa e outra de sonho, o que podemos esperar da próxima? Diria que o principal desafio será evitar o deslumbramento pelo sucesso. Há que consolidar e desenvolver as aprendizagens das últimas épocas, perceber que os desafios de 21/22 serão superiores e que a fasquia da exigência dos adeptos estará colocada num nível mais elevado. Não haverá margem para facilitismos, e não me refiro apenas ao futebol. Deixo de seguida outros três pontos que deverão ser encarados de forma prioritária.
Finanças. Aproxima-se o reembolso do empréstimo obrigacionista de 26M. Penso que é praticamente inevitável que se emita um novo, de valor superior e com uma taxa de juro mais reduzida, que, tendo sucesso, permitirá restaurar alguma estabilidade na tesouraria pela primeira vez desde o verão quente de 2018. Essa estabilização será fundamental para se poder finalmente começar a juntar o pé-de-meia necessário para a recompra das VMOCs - momento que eliminará em definitivo o espectro de perda da maioria da SAD.
Modalidades. Muitos acusaram esta direção de desinvestir nas modalidades, mas o tempo tem mostrado que a racionalização de custos era necessária face às dificuldades que o clube atravessou, agravadas ainda mais pela pandemia. Todos os outros clubes, portugueses ou europeus, tiveram de fazer o mesmo. O tempo e o museu têm mostrado também que, de uma forma geral, continuamos a ter equipas competitivas: a época 2020/21 ainda não chegou ao fim e já temos títulos no futsal (Liga dos Campeões, Taça de Portugal referente a 19/20, Taça da Liga), basquetebol (Taça de Portugal e ainda a Taça de Portugal referente a 19/20), voleibol (Taça de Portugal), hóquei em patins (Liga Europeia), atletismo (Campeonato Nacional de Corta-mato Masculino e Feminino) e rugby (Campeonato Nacional de XV Feminino). Manter a competitividade e a sustentabilidade de todas as equipas será sempre o caminho certo, se possível aumentando de forma gradual o peso da formação nas equipas principais - as conquistas do futsal foram exemplares também nesse sentido.
Unidade. Aproveitar o bom momento para tentar chegar a um compromisso com as claques, de forma a podermos voltar a sentir o incomparável ambiente a que nos habituámos em Alvalade e no Pavilhão João Rocha. Obviamente que, aqui, será necessário existir boa vontade de todas as partes, mas a bem do clube, das suas equipas e atletas, é fundamental termos o conflito sanado quando os recintos desportivos forem reabertos ao público.
São desafios importantes que precisamos de superar. Os sportinguistas sabem, por experiência própria, que muitas coisas podem mudar no espaço de um ano: ainda há pouco tempo observámos o clube desabar sobre si próprio em poucos meses; mas neste último ano, muitas coisas mudaram para melhor, para muito melhor. Que continuemos a caminhar neste sentido e que daqui a um ano estejamos ainda mais próximos do clube eclético, competitivo, sustentável e unido que todos desejamos.