segunda-feira, 23 de julho de 2018

Caso Bruma: Benfica esteve por trás da tentativa de rescisão

Recapitulando o caso Bruma

No dia 11 de julho de 2013, o futebol português assistiu ao nascimento de uma novela que dominou a atualidade durante várias semanas, quando o jogador Armindo Tué Na Bangna, conhecido por Bruma, decidiu considerar inválido o contrato que o ligava ao Sporting até ao final de junho de 2014. O jogador não compareceu ao seu primeiro dia de treinos após as férias, desapareceu do país e iniciou um processo que visava a confirmação da sua libertação do clube, de forma a poder assinar de imediato por quem bem entendesse. Foi também nessa altura que foram elevados ao estatuto de figuras públicas o seu tutor e empresário, Catió Baldé, e o advogado Bebiano Gomes, que se desdobraram em declarações e acusações ao Sporting - que iam desde coação verbal até tentativa de rapto. 

Imagem retirada do blogue Mister do Café
O assunto dominou as capas de jornais, mas as aspirações do jogador e seus representantes acabaram por sofrer um duro revés no dia 23 de agosto, data em que a Comissão Arbitral Paritária decidiu, por unanimidade, que o contrato que ligava Bruma ao Sporting ainda era válido por mais um ano. Entre a reintegração no plantel e a negociação com outro clube, o Sporting e o jogador optaram pela segunda hipótese, chegando a acordo no dia 1 de setembro com os turcos do Galatasaray por 10 milhões de euros, podendo receber ainda mais 3 milhões pelo cumprimento de objetivos e 25% de uma mais-valia futura, e tendo o Sporting pago 800.000 euros de comissão pela venda. Entre o valor fixo da transferência, o cumprimento dos objetivos variáveis e a mais-valia, o jogador acabaria por render cerca de 14 milhões de euros ao Sporting.

Para a história ficou o mau aconselhamento feito ao jogador por Catió Baldé e Bebiano Gomes, que, perante a possibilidade de receberem uma maquia elevada pela colocação de um jogador livre e de enorme potencial, relegaram para segundo plano os interesses desportivos do jogador - que tinha todas as condições para ser uma peça fundamental da equipa principal do Sporting. 

O que nunca se chegou a saber foi onde tencionavam Baldé e Bebiano colocar Bruma caso lhes fosse dada razão no diferendo com o Sporting, e se houve apoio ativo de algum clube para que se concretizasse a quebra de vínculo com o Sporting. Houve notícias que falavam do interesse do Porto - que na altura estava de relações cortadas com o Sporting -, mas nada de concreto se apurou. Certezas nunca houve... até à semana passada.

O blogue Mercado de Benfica disponibilizou, no passado dia 18, o arquivo de emails de Paulo Gonçalves, onde estão incluídas mensagens que mostram, de forma inequívoca, aquilo que realmente se passou: foi o Benfica que esteve a manobrar nos bastidores de forma a roubar Bruma ao Sporting.


O que se passou nos bastidores

A rutura entre Bruma e o Sporting aconteceu a 11 de julho, mas o primeiro registo de envolvimento benfiquista no processo surge vários dias antes. A 7 de julho de 2013, ou seja, quatro dias antes, Paulo Gonçalves recebe o esboço da Notificação Judicial que Bebiano Gomes estava a preparar para formalizar a desvinculação do jogador.


Miguel Lopes Lourenço usa aqui uma conta pessoal mas era, na altura, advogado do escritório Correia, Seara, Caldas, Simões e Associados, que, como se poderá ver já a seguir, assessorou o Benfica neste processo.

Apenas dois dias depois, a 9 de julho, Célia Falé - que trabalha no gabinete jurídico do Benfica - envia um mail a Paulo Gonçalves com o primeiro esboço do contrato a apresentar a Bruma.


Minutos mais tarde, Paulo Gonçalves reencaminhou o documento para os advogados Miguel Lopes Lourenço e José Seixas, desta vez usando as contas do escritório Correia, Seara, Caldas, Simões e Associados, com um texto que não deixa dúvidas quanto ao que estava aqui em causa.


Vou deixar a análise ao conteúdo do contrato mais para a frente. 

No dia seguinte, 10 de julho, ou seja, um dia antes da rutura entre Bruma e o Sporting, Paulo Gonçalves volta a enviar um mail aos advogados que o auxiliavam neste processo. O plano, como se pode ver, passava pela celebração do contrato entre o Benfica e Bruma logo no dia seguinte.


Existem outros mails trocados durante esse mesmo dia sobre o assunto, incluindo um que continha uma versão revista do contrato a oferecer a Bruma. Ainda a 10 de julho, um mail enviado a Paulo Gonçalves permite perceber que o escritório de advogados contratado pelo Benfica participou também na redação de um documento a assinar por Bruma que, supostamente, atestaria a boa-fé do Benfica em todo este processo. Imagine-se se houvesse má-fé...


Em paralelo às questões burocráticas de desvinculação e assinatura do novo contrato, a agência de viagens parceira do Benfica preparava a saída do país de Bruma e respetiva entourage, com a marcação de uma viagem para o Dubai entre 12 e 17 de julho:



Há dois pormenores que vale a pena ressalvar relativamente a esta viagem. O primeiro é que a data de regresso prevista era 17 de julho porque...

Cláusula do esboço de contrato apresentado pelo Benfica a Bruma

... estava previsto que o contrato com o Benfica se iniciasse no dia 18.

O segundo é relativo a um dos nomes referidos na reserva: Isidoro Gimenez. Trata-se de um empresário muito chegado a Paulo Gonçalves que participaria, dois anos mais tarde, numa outra negociata que ficou conhecida pelos piores motivos: a transferência de Francisco Vera do Rubio Ñu para o Benfica, da qual houve suspeitas, da parte das autoridades paraguaias, da existência dos crimes de lavagem de dinheiro e evasão fiscal (LINK).

Tudo isto, convém relembrar, aconteceu antes da rutura definitiva entre Bruma e o Sporting.

Nos dias seguintes houve mais trocas de emails entre Paulo Gonçalves e os advogados sobre a elaboração de documentação no âmbito da desvinculação, incluindo a ação a interpor na Comissão Arbitral Paritária. Também existem registos de contactos diretos entre Bebiano Gomes e Paulo Gonçalves, a acertar pormenores relativamente ao processo.


Os indícios já são suficientemente claros, mas creio que deixa de haver quaisquer dúvidas de que havia uma colaboração assumida entre os representantes de Bruma e os representantes do Benfica quando se observa que a solicitadora contratada para notificar o Sporting... enviou a fatura pelos seus serviços para Bebiano Gomes e para os assessores do Benfica. Perante a receção da fatura, advogado do Benfica perguntou a Paulo Gonçalves quem deveria assumir o pagamento desses custos - se o Benfica ou Bruma. Uma dúvida que apenas se coloca por estarem todos a trabalhar em conjunto para o mesmo fim.



Os contornos do negócio

Os emails disponibilizados pelo blogue Mercado de Benfica também nos permitem saber exatamente quais os contornos do negócio que levaria Bruma a assinar com o clube encarnado.

Num dos mails trocados entre Paulo Gonçalves e Célia Falé, a 10 de julho, é enviado um esboço de contrato entre Bruma e o Benfica que teria a duração de 6 épocas, válido entre julho de 2013 e junho de 2019, em que o jogador auferiria um vencimento bruto crescente - começando em 1,2 milhões nas duas primeiras épocas e subindo progressivamente até aos 2 milhões na última época, com a possibilidade de receber mais 400.000 euros por objetivos em cada temporada - e uma cláusula de rescisão de 40 milhões de euros. Bruma iria receber, portanto, um total de 8,9 milhões distribuídos ao longo de 6 anos, aos quais se poderiam somar mais 2,4 milhões caso todos os objetivos fossem cumpridos. Não há referência ao pagamento de qualquer prémio de assinatura para o jogador.

Nada mau para um jogador de 18 anos mas, ainda assim, não é propriamente o contrato de uma vida. O verdadeiro jackpot estava reservado para os intermediários (carregar na imagem para ampliar):


O Benfica pagaria a Isidoro Gimenez o valor de 6 milhões de euros no prazo de 30 dias. Na eventualidade de uma transferência de Bruma para outro clube durante a vigência deste contrato, o Benfica deveria pagar mais 5 milhões a Isidoro Gimenez (perfazendo então um total de 11 milhões). Para além disso, Isidoro ficaria ainda 50% das mais-valias acima de 11 milhões.

E então Catió Baldé e Bebiano Gomes? Ficariam a chuchar no dedo?

Obviamente que não. No mesmo email em que este contrato é enviado, existem outros dois anexos:


Este contrato foi assinado por uma tal de Royal Capital (cujo endereço fiscal é o mesmo da Premier Football Advisors de Isidoro Gimenez) e Catió Baldé, e estipula que Catió Baldé teria a receber dessa empresa o valor de 5 milhões de euros no prazo de 30 dias, e mais 5 milhões na eventualidade de uma futura transferência. Quanto a Bebiano Gomes...


... teria a receber 1 milhão de euros no prazo de 30 dias após a assinatura de Bruma pelo Benfica.

Ou seja, a presença de Isidoro Gimenez parece ser a de mera ponte para evitar a associação direta de Catió Baldé e Bebiano Gomes ao Benfica. Recapitulemos: no prazo de 30 dias após a assinatura, o Benfica pagaria 6 milhões a Isidoro Gimenez, que por sua vez entregaria 5 milhões a Catió Baldé e 1 milhão a Bebiano Gomes. Os 5 milhões a receber numa futura transferência de Bruma que seriam pagos a Isidoro Gimenez, seriam depois entregues na totalidade a Catió Baldé. Não havendo outro qualquer contrato por revelar, conclui-se que Isidoro Gimenez ficaria "apenas" com 50% das mais-valias acima de 11 milhões de euros de uma futura transferência.

Nada mau para um par de meses de trabalho. Infelizmente para eles, a novela não teve o desfecho que pretendiam e os 800.000 euros que o Sporting pagou de comissões na venda ao Galatasaray devem ter servido de fraco consolo em comparação com os 10 milhões que Catió poderia ter encaixado caso o negócio com o Benfica se tivesse concretizado. 


Implicações

O arquivo de emails de Paulo Gonçalves não permite perceber se alguma vez os contratos chegaram a ser assinados pelas diferentes partes, nem a partir de que momento o Benfica desistiu de contratar Bruma.

No entanto, fica perfeitamente claro que o Benfica contactou os representantes do jogador à revelia do Sporting e participou ativamente na tentativa de desvinculação de um atleta que tinha um contrato válido, em óbvia violação do artigo 18 do regulamento de transferências da FIFA.

Como tal, o Sporting pode e deve fazer queixa do sucedido junto das entidades competentes. O Benfica tem de ser punido pelo que fez.


Uma curiosidade adicional

Para além de recorrer ao escritório Correia, Seara, Caldas, Simões e Associados, o Benfica teve também o apoio de um especialista em direito desportivo: Lúcio Correia. Não se percebe se o fez na qualidade de subcontratado ou por amor à causa, já que não é referido em momento algum o valor de honorários a pagar nem de forma explícita que é um apoio gratuito.

Parecer enviado por Lúcio Correia a Paulo Gonçalves a 9 de julho

Envio de Nótula Jurídica que foi anexada ao processo pelos representantes do jogador

Envio de informação de Paulo Gonçalves a Lúcio Correia sobre o caso Bruma

Pelos termos utilizados ("agradeço penhoradamente o teu empenho e dedicação neste assunto", "caso que pretendo acompanhar até ao fim"), diria que Lúcio Correia não agiu como prestador de serviços contratado pelo Benfica ou pelos representantes de Bruma - é apenas a minha opinião perante os dados disponíveis, não havendo nada que a corrobore inequivocamente.

De qualquer forma, não deixa de ser preocupante que uma pessoa que ajudou o Benfica de forma tão empenhada num processo de desvinculação de um jogador do Sporting seja agora a pessoa que, sozinha, está a decidir na CAP a justa causa das recentes rescisões dos sete atletas do Sporting.


Perante o "empenho" revelado por Lúcio Correia no caso Bruma, a mim parece-me que existem conflitos de interesses complicados de ignorar.