Recapitulando o caso Bruma
No dia 11 de julho de 2013, o futebol português assistiu ao nascimento de uma novela que dominou a atualidade durante várias semanas, quando o jogador Armindo Tué Na Bangna, conhecido por Bruma, decidiu considerar inválido o contrato que o ligava ao Sporting até ao final de junho de 2014. O jogador não compareceu ao seu primeiro dia de treinos após as férias, desapareceu do país e iniciou um processo que visava a confirmação da sua libertação do clube, de forma a poder assinar de imediato por quem bem entendesse. Foi também nessa altura que foram elevados ao estatuto de figuras públicas o seu tutor e empresário, Catió Baldé, e o advogado Bebiano Gomes, que se desdobraram em declarações e acusações ao Sporting - que iam desde coação verbal até tentativa de rapto.
Imagem retirada do blogue Mister do Café |
O assunto dominou as capas de jornais, mas as aspirações do jogador e seus representantes acabaram por sofrer um duro revés no dia 23 de agosto, data em que a Comissão Arbitral Paritária decidiu, por unanimidade, que o contrato que ligava Bruma ao Sporting ainda era válido por mais um ano. Entre a reintegração no plantel e a negociação com outro clube, o Sporting e o jogador optaram pela segunda hipótese, chegando a acordo no dia 1 de setembro com os turcos do Galatasaray por 10 milhões de euros, podendo receber ainda mais 3 milhões pelo cumprimento de objetivos e 25% de uma mais-valia futura, e tendo o Sporting pago 800.000 euros de comissão pela venda. Entre o valor fixo da transferência, o cumprimento dos objetivos variáveis e a mais-valia, o jogador acabaria por render cerca de 14 milhões de euros ao Sporting.
Para a história ficou o mau aconselhamento feito ao jogador por Catió Baldé e Bebiano Gomes, que, perante a possibilidade de receberem uma maquia elevada pela colocação de um jogador livre e de enorme potencial, relegaram para segundo plano os interesses desportivos do jogador - que tinha todas as condições para ser uma peça fundamental da equipa principal do Sporting.
O que nunca se chegou a saber foi onde tencionavam Baldé e Bebiano colocar Bruma caso lhes fosse dada razão no diferendo com o Sporting, e se houve apoio ativo de algum clube para que se concretizasse a quebra de vínculo com o Sporting. Houve notícias que falavam do interesse do Porto - que na altura estava de relações cortadas com o Sporting -, mas nada de concreto se apurou. Certezas nunca houve... até à semana passada.
O blogue Mercado de Benfica disponibilizou, no passado dia 18, o arquivo de emails de Paulo Gonçalves, onde estão incluídas mensagens que mostram, de forma inequívoca, aquilo que realmente se passou: foi o Benfica que esteve a manobrar nos bastidores de forma a roubar Bruma ao Sporting.
O que se passou nos bastidores
A rutura entre Bruma e o Sporting aconteceu a 11 de julho, mas o primeiro registo de envolvimento benfiquista no processo surge vários dias antes. A 7 de julho de 2013, ou seja, quatro dias antes, Paulo Gonçalves recebe o esboço da Notificação Judicial que Bebiano Gomes estava a preparar para formalizar a desvinculação do jogador.
Miguel Lopes Lourenço usa aqui uma conta pessoal mas era, na altura, advogado do escritório Correia, Seara, Caldas, Simões e Associados, que, como se poderá ver já a seguir, assessorou o Benfica neste processo.
Apenas dois dias depois, a 9 de julho, Célia Falé - que trabalha no gabinete jurídico do Benfica - envia um mail a Paulo Gonçalves com o primeiro esboço do contrato a apresentar a Bruma.
Minutos mais tarde, Paulo Gonçalves reencaminhou o documento para os advogados Miguel Lopes Lourenço e José Seixas, desta vez usando as contas do escritório Correia, Seara, Caldas, Simões e Associados, com um texto que não deixa dúvidas quanto ao que estava aqui em causa.
Vou deixar a análise ao conteúdo do contrato mais para a frente.
No dia seguinte, 10 de julho, ou seja, um dia antes da rutura entre Bruma e o Sporting, Paulo Gonçalves volta a enviar um mail aos advogados que o auxiliavam neste processo. O plano, como se pode ver, passava pela celebração do contrato entre o Benfica e Bruma logo no dia seguinte.
Existem outros mails trocados durante esse mesmo dia sobre o assunto, incluindo um que continha uma versão revista do contrato a oferecer a Bruma. Ainda a 10 de julho, um mail enviado a Paulo Gonçalves permite perceber que o escritório de advogados contratado pelo Benfica participou também na redação de um documento a assinar por Bruma que, supostamente, atestaria a boa-fé do Benfica em todo este processo. Imagine-se se houvesse má-fé...
Em paralelo às questões burocráticas de desvinculação e assinatura do novo contrato, a agência de viagens parceira do Benfica preparava a saída do país de Bruma e respetiva entourage, com a marcação de uma viagem para o Dubai entre 12 e 17 de julho:
Há dois pormenores que vale a pena ressalvar relativamente a esta viagem. O primeiro é que a data de regresso prevista era 17 de julho porque...
Cláusula do esboço de contrato apresentado pelo Benfica a Bruma |
... estava previsto que o contrato com o Benfica se iniciasse no dia 18.
O segundo é relativo a um dos nomes referidos na reserva: Isidoro Gimenez. Trata-se de um empresário muito chegado a Paulo Gonçalves que participaria, dois anos mais tarde, numa outra negociata que ficou conhecida pelos piores motivos: a transferência de Francisco Vera do Rubio Ñu para o Benfica, da qual houve suspeitas, da parte das autoridades paraguaias, da existência dos crimes de lavagem de dinheiro e evasão fiscal (LINK).
Tudo isto, convém relembrar, aconteceu antes da rutura definitiva entre Bruma e o Sporting.
Nos dias seguintes houve mais trocas de emails entre Paulo Gonçalves e os advogados sobre a elaboração de documentação no âmbito da desvinculação, incluindo a ação a interpor na Comissão Arbitral Paritária. Também existem registos de contactos diretos entre Bebiano Gomes e Paulo Gonçalves, a acertar pormenores relativamente ao processo.
Os indícios já são suficientemente claros, mas creio que deixa de haver quaisquer dúvidas de que havia uma colaboração assumida entre os representantes de Bruma e os representantes do Benfica quando se observa que a solicitadora contratada para notificar o Sporting... enviou a fatura pelos seus serviços para Bebiano Gomes e para os assessores do Benfica. Perante a receção da fatura, advogado do Benfica perguntou a Paulo Gonçalves quem deveria assumir o pagamento desses custos - se o Benfica ou Bruma. Uma dúvida que apenas se coloca por estarem todos a trabalhar em conjunto para o mesmo fim.
Os contornos do negócio
Os emails disponibilizados pelo blogue Mercado de Benfica também nos permitem saber exatamente quais os contornos do negócio que levaria Bruma a assinar com o clube encarnado.
Num dos mails trocados entre Paulo Gonçalves e Célia Falé, a 10 de julho, é enviado um esboço de contrato entre Bruma e o Benfica que teria a duração de 6 épocas, válido entre julho de 2013 e junho de 2019, em que o jogador auferiria um vencimento bruto crescente - começando em 1,2 milhões nas duas primeiras épocas e subindo progressivamente até aos 2 milhões na última época, com a possibilidade de receber mais 400.000 euros por objetivos em cada temporada - e uma cláusula de rescisão de 40 milhões de euros. Bruma iria receber, portanto, um total de 8,9 milhões distribuídos ao longo de 6 anos, aos quais se poderiam somar mais 2,4 milhões caso todos os objetivos fossem cumpridos. Não há referência ao pagamento de qualquer prémio de assinatura para o jogador.
Nada mau para um jogador de 18 anos mas, ainda assim, não é propriamente o contrato de uma vida. O verdadeiro jackpot estava reservado para os intermediários (carregar na imagem para ampliar):
Nada mau para um jogador de 18 anos mas, ainda assim, não é propriamente o contrato de uma vida. O verdadeiro jackpot estava reservado para os intermediários (carregar na imagem para ampliar):
O Benfica pagaria a Isidoro Gimenez o valor de 6 milhões de euros no prazo de 30 dias. Na eventualidade de uma transferência de Bruma para outro clube durante a vigência deste contrato, o Benfica deveria pagar mais 5 milhões a Isidoro Gimenez (perfazendo então um total de 11 milhões). Para além disso, Isidoro ficaria ainda 50% das mais-valias acima de 11 milhões.
E então Catió Baldé e Bebiano Gomes? Ficariam a chuchar no dedo?
Obviamente que não. No mesmo email em que este contrato é enviado, existem outros dois anexos:
Este contrato foi assinado por uma tal de Royal Capital (cujo endereço fiscal é o mesmo da Premier Football Advisors de Isidoro Gimenez) e Catió Baldé, e estipula que Catió Baldé teria a receber dessa empresa o valor de 5 milhões de euros no prazo de 30 dias, e mais 5 milhões na eventualidade de uma futura transferência. Quanto a Bebiano Gomes...
... teria a receber 1 milhão de euros no prazo de 30 dias após a assinatura de Bruma pelo Benfica.
Ou seja, a presença de Isidoro Gimenez parece ser a de mera ponte para evitar a associação direta de Catió Baldé e Bebiano Gomes ao Benfica. Recapitulemos: no prazo de 30 dias após a assinatura, o Benfica pagaria 6 milhões a Isidoro Gimenez, que por sua vez entregaria 5 milhões a Catió Baldé e 1 milhão a Bebiano Gomes. Os 5 milhões a receber numa futura transferência de Bruma que seriam pagos a Isidoro Gimenez, seriam depois entregues na totalidade a Catió Baldé. Não havendo outro qualquer contrato por revelar, conclui-se que Isidoro Gimenez ficaria "apenas" com 50% das mais-valias acima de 11 milhões de euros de uma futura transferência.
Nada mau para um par de meses de trabalho. Infelizmente para eles, a novela não teve o desfecho que pretendiam e os 800.000 euros que o Sporting pagou de comissões na venda ao Galatasaray devem ter servido de fraco consolo em comparação com os 10 milhões que Catió poderia ter encaixado caso o negócio com o Benfica se tivesse concretizado.
O arquivo de emails de Paulo Gonçalves não permite perceber se alguma vez os contratos chegaram a ser assinados pelas diferentes partes, nem a partir de que momento o Benfica desistiu de contratar Bruma.
No entanto, fica perfeitamente claro que o Benfica contactou os representantes do jogador à revelia do Sporting e participou ativamente na tentativa de desvinculação de um atleta que tinha um contrato válido, em óbvia violação do artigo 18 do regulamento de transferências da FIFA.
No entanto, fica perfeitamente claro que o Benfica contactou os representantes do jogador à revelia do Sporting e participou ativamente na tentativa de desvinculação de um atleta que tinha um contrato válido, em óbvia violação do artigo 18 do regulamento de transferências da FIFA.
Como tal, o Sporting pode e deve fazer queixa do sucedido junto das entidades competentes. O Benfica tem de ser punido pelo que fez.
Uma curiosidade adicional
Para além de recorrer ao escritório Correia, Seara, Caldas, Simões e Associados, o Benfica teve também o apoio de um especialista em direito desportivo: Lúcio Correia. Não se percebe se o fez na qualidade de subcontratado ou por amor à causa, já que não é referido em momento algum o valor de honorários a pagar nem de forma explícita que é um apoio gratuito.
Parecer enviado por Lúcio Correia a Paulo Gonçalves a 9 de julho |
Envio de Nótula Jurídica que foi anexada ao processo pelos representantes do jogador |
Envio de informação de Paulo Gonçalves a Lúcio Correia sobre o caso Bruma |
Pelos termos utilizados ("agradeço penhoradamente o teu empenho e dedicação neste assunto", "caso que pretendo acompanhar até ao fim"), diria que Lúcio Correia não agiu como prestador de serviços contratado pelo Benfica ou pelos representantes de Bruma - é apenas a minha opinião perante os dados disponíveis, não havendo nada que a corrobore inequivocamente.
De qualquer forma, não deixa de ser preocupante que uma pessoa que ajudou o Benfica de forma tão empenhada num processo de desvinculação de um jogador do Sporting seja agora a pessoa que, sozinha, está a decidir na CAP a justa causa das recentes rescisões dos sete atletas do Sporting.
Perante o "empenho" revelado por Lúcio Correia no caso Bruma, a mim parece-me que existem conflitos de interesses complicados de ignorar.