segunda-feira, 17 de maio de 2021

Os facilitadores da estrelinha, parte 1

Até há não muitos meses, quando o Sporting teimosamente resistia na liderança contrariando todos os prognósticos feitos por adeptos e especialistas, muitos explicavam os bons resultados do principal candidato ao 4º lugar com a famosa estrelinha. As escassas oportunidades consentidas aos adversários eram um acaso, a coesão e organização demonstradas em campo eram fruto das circunstâncias. Era, sobretudo, uma questão de sorte.

Curiosamente, Rúben Amorim não só não rebateu essa teoria - que, percebia-se bem, era uma forma de diminuir o seu trabalho -, como até abraçou de bom grado o discurso da estrelinha: provavelmente achou que só teria a ganhar em ser encarado como um outsider que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por fraquejar, para além de que não tinha nada a perder em reclamar para si algo que, nos momentos decisivos, poderia mexer na cabeça dos jogadores a seu favor.

É verdade que se costuma dizer que não há campeões sem sorte, e que a estrelinha pode salvar a equipa em um, dois ou três resultados. Mas quando se começam a acumular os jogos resolvidos da mesma forma, o mais provável é que haja muito trabalho por detrás dessa sorte. E o tempo veio demonstrar que foi precisamente o que se passou neste caso. Aqui ficam, por nenhuma ordem em particular, alguns fatores que, na minha opinião, foram fundamentais para a conquista do campeonato.


Mensagem clara e coerente

Não sei como Rúben comunica dentro do balneário. Apenas tivemos um cheirinho no vídeo publicado pelo Sporting pouco depois da conquista do título, e foi arrepiante. Mas já temos 14 meses de conferências de imprensa e flash interviews que nos permitem concluir, sem margem para dúvidas, que Amorim é um comunicador absolutamente brilhante. As mensagens que transmite são certeiras, claras e duplamente coerentes: tanto no sentido da consistência ao longo do tempo, como também vão ao encontro daquilo que depois se observa em campo.

Exemplos? "Jogo a jogo", nunca poupando jogadores em risco de suspensão já a pensar em partidas teoricamente mais difíceis na jornada seguinte. "Vamos perder um dia, mas acreditamos que não será esta semana", e nunca se viu a equipa baixar os braços mesmo nas circunstâncias mais difíceis. "O céu até pode cair que não vamos mudar a forma de fazer as coisas", definindo um modelo ao qual foi sempre fiel, jogando com variantes subtis que foi desenvolvendo e adaptando em função das necessidades. "Não olhamos para o bilhete de identidade dos jogadores", lançando TTs e Inácios e Braganças e Essugos às feras. "Onde vai um vão todos" foi o lema da época, gerado espontaneamente num momento de contrariedade, que mobilizou jogadores, estrutura e adeptos à volta de um objetivo e de um ideal.

Para além disso, tem a inteligência para escapar a todas as perguntas com armadilha que lhe foram colocando, nunca caindo na tentação para menorizar ou provocar um adversário.

Costuma-se dizer que a palavra é uma arma, e Rúben manejou-a com mestria. Foi assim que conquistou o universo sportinguista e um grupo de trabalho que confia cegamente na sua liderança.


Uma linha defensiva primorosa

A coordenação da linha defensiva do Sporting é uma obra de arte. Um dos meus guilty pleasures nos jogos do Sporting tem sido observar o desespero dos avançados adversários quando percebem que foram apanhados mais uma vez em fora-de-jogo. 

Ainda mais extraordinário é verificar que essa coordenação se manteve irrepreensível independentemente das circunstâncias.  A linha é composta pelos três centrais e um lateral? Não há problema. Pelos três centrais e pelos dois laterais? É igual. Inácio está suspenso e entra Neto? Já todos sabemos a resposta.


Não ter vergonha de ser inteligente

Foram várias as situações de aperto em que a equipa percebeu que teria melhores hipóteses de obter um bom resultado oferecendo a bola ao adversário - algumas vezes descaradamente -, fruto da confiança inabalável do Sporting no seu processo defensivo e na sua capacidade de sofrimento. Tem o risco acrescido de deixar treinador e jogadores mais expostos à crítica, porque toda a gente - dos adeptos aos comentadores - prefere ver uma equipa a ter bola e a assumir as despesas do jogo.

Abdicar da iniciativa foi uma opção recorrente que, verdade seja dita, nem sempre acabou bem. Em alguns jogos, a equipa pareceu satisfeita com o 1-0 e acabou por permitir o empate. Mas, contas feitas no final, foram muito mais as situações em que a estratégia resultou: foi assim em Braga, em Faro, no Dragão, na final da Taça da Liga, e em várias outras partidas em que a equipa preferiu cerrar os dentes nos minutos finais e aguardar organizadamente as tentativas de ataque adversário do que se expor a transições mais arriscadas. Não é tão bonito, mas não há dúvida nenhuma de que foi mais inteligente.


Um matador improvável

Quando o Sporting contratou Pedro Gonçalves, o que mais me chamou a atenção nos vídeos que na altura circularam foi a classe na condução e a frieza na finalização nos lances dos golos que marcou a Benfica e Porto com a camisola do Famalicão. Estava longe de imaginar, no entanto, que fosse a máquina goleadora que permitiu ao Sporting atravessar quase ileso o primeiro quarto do campeonato, fase em que as dores de crescimento eram maiores por estar em curso a afinação de processos e entrosamento de um onze composto maioritariamente por jogadores recém-chegados ao clube.

Na 5ª jornada marcou os dois golos na vitória por 2-1 ao Santa Clara. A seguir picou o ponto no jogo em atraso da 1ª jornada contra o Gil Vicente. Depois marcou os dois primeiros golos na goleada ao Tondela e repetiu a dose em Guimarães. Voltou a bisar na vitória por 2-1 ao Moreirense e ainda abriria o marcador em Famalicão. 10 golos em 6 jogos que valeram muitos pontos e permitiram o Sporting lançar-se isolado numa liderança que não mais largaria.


Mentalidade ultracompetitiva

O Sporting teve, no passado recente, muitas equipas de qualidade com grandes jogadores. No entanto, salvo algumas exceções (como Bruno Fernandes), eram jogadores que se pareciam resignar demasiado facilmente quando as coisas não corriam bem. 

Nesta época assistimos à entrada de jogadores como Nuno Santos, Palhinha, Pedro Gonçalves e Porro que dão tudo em cada lance, ficam furiosos consigo próprios quando algum lance não lhes sai bem e parecem conseguir canalizar essa frustração à flor da pele para melhorar o seu rendimento e, com isso, dar também um abanão na equipa. Injetaram doses importantes de inconformismo que, a meu ver, foram fundamentais em vários momentos da época.


Duas estrelas nas faixas

Não havendo jogadores na frente muito fortes no 1x1, as responsabilidades de criação de desequilíbrios foram, muitas vezes, colocadas nos ombros de dois miúdos que tiveram uma época explosiva. Não é comum um lateral revelar-se como o jogador mais decisivo de uma partida, mas o Sporting teve dois que valeram muitos pontos: Pedro Porro, jogador com uma vertigem ofensiva que causa inveja a muitos extremos, e Nuno Mendes, um criativo que encontrou a sua zona de conforto junto à faixa esquerda. Para além disso, ambos são defensores competentes (especialmente Nuno) e têm um pulmão quase inesgotável.

Não foi por acaso que ambos chegaram a internacionais A nas respetivas seleções. Mendes e Porro, aos 18 e 21 anos são, facilmente, a melhor dupla de laterais que me lembro de ver jogar no Sporting.


(continua)